Fissuras natalinas
17/12/2004
- Opinión
A vida é breve; brevíssima. Eis que o Natal, de novo, se aproxima.
Se outrora a vida nos parecia mais longa, não se deve a que as
pessoas morriam mais cheias de anos. Pelo contrário. Hoje, nossa
idade média dilata-se graças aos avanços da medicina, do
saneamento público, dos excessivos cuidados com o corpo,
propalados e propagados. Tudo faz mal à saúde, do cigarro ao ar
que se respira, do sedentarismo aos alimentos envenenados pelos
pesticidas. Até que se descubra como viver sem comer e respirar,
vamos sobrevivendo entre percalços e esperanças.
Antes, os dias tinham ritmo cadenciado. Cada coisa no seu lugar -
a casa, a cidade, o país, o mundo. E no seu tempo: infância,
estudo, juventude, casamento, trabalho, aposentadoria. Hoje, tudo
se embaralha.
O mundo invade nosso lar pela tela de TV, as crianças presenciam
atos sexuais antes de saberem o que é sexo, a publicidade exacerba
o apetite insaciável do desejo. São tantos os apelos, as seduções
e as preocupações, que o tempo se nos faz breve.
Outrora, se um parente adoecesse em outra região do país, a
notícia chegava em doses homeopáticas, via correio. Agora o
telefone nos alcança no banheiro e na rua, no bar e na igreja. Não
há tempo nem espaço. Estamos condenados à simultaneidade. Num
único momento somos exortados ao prazer e à dor, à alegria e à
tristeza, ao afeto e à indiferença.
Quando menos esperamos, as festas natalinas se acercam. O que
suscita, no fundo da alma, um certo pânico. Não pelo significado
do Natal, perdido nos porões da memória e escondido nos desvãos do
sentimento religioso.
Falo daquela sensação que o gado experimenta remetido ao
matadouro. Rumam todos num empurra-empurra, como se disputassem o
privilégio de morrer primeiro.
Já não são bois e vacas, mas rebanho condenado ao atavismo de
trilhar o caminho do próprio suplício.
Assim vamos nós, manada humana, rumo ao consumo, cientes de que
nos arrancarão o dinheiro e a alma. Bombardeados pela publicidade,
ornada com sinos, velas, neves de algodão e belas mamãenoelas,
somos impelidos a comprar o que não necessitamos e a gastar o que
não podemos.
Como é tempo de férias, há que programar a viagem, a praia, o
sítio, arrumar e desfazer malas, enfrentar a maratona dos
supermercados (leve um livro para ler na fila do caixa) e suportar
os engarrafamentos na cidade e na estrada. E os shoppings? Ah, os
shoppings! São os templos da concupiscência - palavra grega que
bem expressa esse sentimento ambíguo de atração e repulsão. Entra-
se fissurado e sai-se aliviado.
Por que o imperativo de dar presentes no Natal? A central única
dos consumidores deveria decretar uma greve geral ao consumo. Em
plena época de Natal. Não se compraria mais do que em outros meses
do ano. E, em vez de presentes, daríamos carinho, atenção,
alegria, apoio, solidariedade. Os pais levariam os filhos aos
hospitais para doarem, no valor dos presentes, algo indispensável
aos doentes mais pobres. A família ofertaria uma cesta básica a
outra carente. Seriam presenteados os sofredores de rua, os
presos, os loucos, os que se tratam de dependências químicas, os
portadores do vírus da Aids e os que vivem sem-terra, sem-teto e
sem pão. Trocar-se-ia Papai Noel pelo Menino Jesus, o shopping
pela igreja, a mercadoria pela compaixão.
Aquecidos pela fé, celebraríamos assim uma verdadeira festa,
aquela que, no dia seguinte, não deixa ressacas de farturas,
faturas e fissuras, mas enche o coração de júbilo.
__________________________________________________________________
* Frei Betto é escritor, autor de Gosto de uva escritos
selecionados (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111051
Del mismo autor
- Homenaje a Paulo Freire en el centenario de su nacimiento 14/09/2021
- Homenagem a Paulo Freire em seu centenário de nascimento 08/09/2021
- FSM: de espaço aberto a espaço de acção 04/08/2020
- WSF: from an open space to a space for action 04/08/2020
- FSM : d'un espace ouvert à un espace d'action 04/08/2020
- FSM: de espacio abierto a espacio de acción 04/08/2020
- Ética em tempos de pandemia 27/07/2020
- Carta a amigos y amigas del exterior 20/07/2020
- Carta aos amigos e amigas do exterior 20/07/2020
- Direito à alimentação saudável 09/07/2020