A beleza irresistível de psique
16/12/2004
- Opinión
No tempo em que o marxismo andava em moda, quando a miséria
incomodava e o socialismo apontava uma saída para uma vida
melhor, dizia-se que o mercado controlava ³as relações de
produção², consideradas ³o motor da história².
Bem, o socialismo evaporou-se, o marxismo saiu de moda e a miséria
aumentou assustadoramente. Então o que aconteceu? Já não queremos
uma vida melhor para todos? Devagar com o andor. O mercado
aprimorou-se, reduziu a distância entre a coisa física e a
semântica, e agora procura nos convencer de que a saída para uma
vida melhor... é uma questão individual (qualidade de vida) e
avisa que acabou o combustível que abastecia o motor da história.
Assim, o mercado já não influi apenas nas relações de produção.
Influi em todas as relações: familiares, afetivas, sexuais,
políticas, religiosas... (Em tempo: que Deus e o Estado se
preocupem com os miseráveis...).
O que há de novo é que agora o mercado não lhe vende um carro, uma
roupa ou um sorvete. Vende você. Isso mesmo. Todo produto reflete
a nossa alma e o nosso espírito. E antes de nos dar conta de que
temos consciência e subjetividade, redutos do Mistério, o mercado
trata de personalizar de tal modo os produtos, a ponto de o
consumidor só se sentir completo quando deles se apossa. Ou será
que você não se sente um pouco triste quando fica privado uma
semana do seu carro ou não encontra seu xampu preferido?
No prefácio à segunda edição de Gaia, Nietzsche lamenta a
progressiva perda do ³pudor com o qual a Natureza se escondia
atrás de véus e enigmas². O Mistério é uma experiência em
extinção. Agora queremos desvendar todas as verdades, ver tudo,
saber de tudo. Antes que façamos a pergunta, o mercado já
apresenta a resposta. Todas, do tratamento de rápido emagrecimento
(fica decretado que gordura é falta de educação) ao esoterismo
que aplica a Leonardo Da Vinci a fórmula de produzir Harry Potter
para adultos.
Não há nenhum reduto da experiência humana que escape ao mercado.
Em seu poder semântico, ele se antecipa aos nossos desejos: não
oferece um carro, mas requinte; não o refrigerante, mas o sabor
refrescante; não o desodorante, mas um toque de classe. Assim
vamos nos revestindo de produtos fetichistas que nos imprimem
valor, status, identidade. Como disse Montaigne, ninguém compra um
cavalo por causa da beleza do arreio, mas em se tratando de seres
humanos não valemos pelo que somos, e sim pelo que demonstramos
possuir.
O mercado apela à nossa libido e à nossa tendência à violência.
Não quer apenas que possuamos os objetos, induz-nos a destruí-
los. Já não haverá museus para os objetos da pós-modernidade.
Todos são destrutíveis ou, para usar o jargão da moda,
descartáveis. São feitos para serem subjugados, devorados,
agredidos. Feitos para exaltar a nossa suposta onipotência, de
quem não deixa pedra sobre pedra, descarta tudo, família, amigos,
colegas de trabalho, parceiros sexuais...
O mercado teme que decidamos virar-lhe as costas e caminhar para
aquele lugar em que ele não pode jamais chegar, e ainda que
chegasse nada teria a dizer: a contemplação do Mistério.
Na falta do Mistério, só nos resta essa incessante objetivação na
qual antecipamos, ao dar vazão aos nossos instintos assassinos, a
nossa própria morte. Como numa corrida de Fórmula 1, vencer não é
importante, o que interessa é imprimir mais e mais velocidade à
existência.
Conta a fábula que Afrodite afastou seu filho Eros da amada
Psique.
Apaixonada, esta aceitou submeter-se às mais duras provas para
demonstrar que era digna daquele homem. Selecionou as sementes
que enchiam o depósito da casa de Afrodite; cortou a lã das
ovelhas que pastavam num vale distante; buscou água do mais
inacessível manancial da montanha.
Afrodite impôs-lhe mais uma prova: ir até o inferno e dizer a
Proserpina que Afrodite ansiava por um pouco de sua irresistível
formosura e, portanto, pedia que lhe enviasse seu ungüento
mágico. Psique recebeu ordem de não abrir o pote no qual levaria
a poção da beleza. Superando mil perigos, e com a ajuda de
Caronte, Psique atravessou o rio dos mortos e chegou à terra de
Tártaro.
Obteve o ungüento mas, na volta, não resistiu à tentação, abriu o
pote e experimentou uma pitada daquela maravilha que a tornaria
irresistível para Eros.
A beleza excessiva foi a causa de suas desgraças. Não queria ser
bela em si mesma, mas só aos olhos do amado. ³Minhas aventuras o
comoverão dizia ela -, meus atos o farão me admirar, mas só a
beleza me fará irresistível para ele². Após abrir o pote e untar
o rosto, Psique caiu num sono profundo como a morte.
A publicidade nos oferece todos os ungüentos e nos promete toda a
beleza.
Aos olhos alheios. Mas o que ou quem preencherá o vazio do
coração?
* Frei Betto é escritor, autor de ³A Obra do Artista uma visão
holística do Universo² (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111050
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