"Direitos" Inumanos
10/12/2004
- Opinión
Há dias, um jornal do Rio exibiu duas fotos de um homem
que acabara de assaltar um turista. Na primeira, o
agressor era levado à delegacia e tinha o rosto sem
marcas. Na segunda, após o interrogatório, o rosto
estava cheio de hematomas. As fotos comprovavam o que
todos sabemos: há policiais que torturam bandidos
pobres.
No dia seguinte, o jornal recebeu uma enxurrada de
cartas de leitores indignados com a denúncia. Por que
tratar com luva de pelica um meliante que rouba e mata?
Deve ser esta a lógica presente na cabeça de oficiais e
soldados americanos flagrados torturando prisioneiros
iraquianos em Bagdá. Por que pensar em Direitos Humanos
diante desse suposto terrorista que, na primeira
oportunidade, faria explodir uma bomba para matar-nos?
A tortura é um "direito" inumano. Após quatro anos na
prisão, nunca tive ânsia de ver torturados os
torturadores que conheci. Não por virtude ou compaixão.
Mas para não me ver rebaixado à inumanidade deles. Não
posso permitir que, após me torturar, venha o
torturador povoar-me. Não posso evitar que ele me
maltrate, mas recuso-me a admitir que a minha
humanidade seja moldada à imagem e semelhança de quem a
nega. A maior vitória do assassino é quando ele nos
torna assassinos em potencial, indiferentes aos
preceitos de justiça e adeptos da vingativa prática do
"olho por olho, dente por dente".
O que torna uma pessoa humana? Não é a cultura. Hitler
apreciava a música de Wagner e conhecia os gênios da
pintura. A bomba atômica foi construída por cientistas
de refinado gosto estético e vasta erudição. Nem é a
religião que nos faz mais humanos. Papas medievais
enviaram cruzados para massacrar os "hereges"
mulçumanos e abençoaram a prática da tortura nos
tribunais da Inquisição. O que nos faz mais humanos
é a educação (não confundir com escolaridade). Há
pessoas cultas que não são educadas, como há aquelas
que são educadas embora mal saibam ler. A educação,
como demonstraram os pais da psicanálise, é o que
domestica o animal que nos habita. É ela que nos
resgata das mãos da fera que acorda dentro de nós cada
vez que temos um de nossos direitos ferido. Sem
educação, diante do despertar da fera, o humano se
reflui e a mão feita para acarinhar se transforma em
arma de agressão, as palavras jorram em impropérios, os
sentimentos naufragam num redemoinho que obscurece a
razão e faz emergir a vingança, o prazer mórbido de
humilhar o semelhante e vê-lo sofrer.
A tortura não é o único "direito" inumano presente
entre nós. Há outros igualmente graves: a fome, o
trabalho escravo, a violência doméstica, a corrupção
etc. Contudo, nenhuma dessas calamidades existiria se
não fosse precedida por uma lógica perversa que preside
a cultura que respiramos: a lógica de que o mercado
goza de mais direitos que os seres humanos; o rigor
fiscal deve prevalecer sobre os direitos sociais; o
homem manda na mulher; a autoridade detém a verdade; o
branco é superior ao negro; a posse de bens torna as
pessoas mais dignas; o Ocidente é mais civilizado que o
Oriente etc.
Uma cultura impregnada de paradigmas nocivos atenta
contra a nossa humanidade. A concepção geral dos
direitos individuais e de sua defesa contra os
arbítrios do Estado adquiriu sua maior expressão
programática na Declaração da Independência dos Estados
Unidos e na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, redigida após a Revolução Francesa. Tornou-se,
então, uma bandeira importante. Já no século XX, a ONU,
diante do repúdio mundial aos crimes cometidos pelo
nazifascismo, aprovou, em 10 de dezembro de 1948, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Padecem
ainda, porém, de preconceitos. O maior deles é
acreditar que certas pessoas merecem ser excluídas de
seus benefícios: aqueles que ferem os meus direitos.
Estamos ainda muito distantes do exemplo de Jesus, que
proclamou a natureza sagrada de cada ser humano, seja
ele cego, surdo, paralítico, pobre etc. Todos somos
moradas vivas de Deus. Jesus se deixou crucificar entre
dois bandidos. Igualando-se a eles, resgatou-os em sua
dignidade.
Quem de nós aplaudiria a tortura e a pena capital
inflingidas a Jesus? Certamente, muitos de nós, pois
nada indicava na aparência humana de Jesus que ali
estava Deus. Só não aplaudiriam aqueles que têm olhos
para ver que em qualquer pessoa Deus transparece. Esses
são raros.
* Frei Betto é escritor, autor de "Entre todos os
homens" (Ática), biografia de Jesus.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111040
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