Roma locuta
30/09/2004
- Opinión
O processo doutrinário contra o livro Igreja:carisma e
poder (Record, 2004 com as atas do processo) não se
concluiu com o "diálogo" com o Cardeal inquisidor.
Faltava ainda a palavra final do corpo de Cardeais e do
Papa. E esta veio em maio de 1985, quando subitamente
apareceu na portaria do Convento de Petrópolis onde
ensinava, um representante do Núncio Apostólico de
Brasília. Entregou-me um livreto, impresso na Poliglota
Vaticana: "Notificação sobre o livro Igreja: carisma e
poder, ensaios de eclesiologia militante". E disse-me:
enquanto rezo na igreja ao lado, leia o texto. Depois
conversaremos. Li com vagar. Pareceu-me um pastiche de
frases, tiradas daqui e dali, formando um sentido que
não reproduzia meu pensamento. Veio o representante do
Núncio e me perguntou: aceita ou rejeita o texto? Eu
lhe disse, sereno: aceito, porque não sou eu que está
ai dentro. Há afirmações que eu também condeno. Mas
aceita? insistiu. Condenando, aceito, disse eu. Graças
a Deus, suspirou ele. E eu: por que tantas graças a
Deus? Porque se não acolhesse o texto, confessou,
teríamos um grave problema eclesial e eu lhe imporia
as penas canônicas contidas neste envelope.
Com isso esperava que tudo tivesse terminado. Qual não
foi a minha supresa quando dias após, por telefone,
um alto funcionário do Vaticano me ditava as penas:
deposição da cátedra de teologia, de editor da Vozes,
de redator da Revista Eclesiástica Brasileira e a
imposição de "silêncio obsequioso" por tempo
indeterminado pelo qual não poderia falar em público
nem publicar mais nada. Firmado no direito canônico,
apenas respondi: só acatarei as penas quando o
documento oficial chegar às minhas mãos. Demorou 20
dias.
Bispos importantes fizeram-me entender: o problema era
mais político que doutrinário. Tratava-se de frear a
CNBB em seu ímpeto libertador e eu era apenas o
pretexto. Por isso pensadamente declarei: "Prefiro
caminhar com a Igreja que, sozinho, com minha
teologia". Teria afastado um golpe contra a CNBB e
poupado as CEBs e a teologia da libertação.
Depois de onze meses, devido às muitas pressões sobre o
Papa, na noite de Páscoa de 1986, fui liberado do
silêncio obsequioso e das demais restrições. Livre,
continuei minhas múltiplas atividades. Até que durante
a Eco-92 no Rio de Janeiro, foi-me comunicado pelo
Cardeal Baggio e pelo Geral da Ordem Franciscana que
novamente deveria me submeter ao silêncio obsequioso e
renunciar ao ensino da teologia. Deveria sair do país
e do Continente. Foram-me sugeridos conventos nas
Filipinas ou na Coréia. Mesmo lá deveria guardar o
silêncio obsequioso e as demais penas.
Pensei comigo: também para um teólogo devem valer os
direitos humanos e o direito inalienável de se
expressar. Em razão disto, com dor disse: troco de
trincheira mas não de combate. Não deixarei a Igreja,
mas uma função dentro dela. Continuarei como teólogo e
escritor, com um pé no ensino e com o outro nos meios
pobres e populares. Assumi a cátedra de Etica,
Filosofia da Religião e de questões contemporâneas na
UERJ. Em seguida passei a ensinar como professor
visitante em algumas universidades estrangeiras. Mas
sempre com os pés e a mente aqui, meu campo de ação.
Passados vinte anos, confesso que me esforcei muito
para que minha alma não ficasse pequena, consoante o
que cantou o poeta: "Tudo vale a pena se a alma não é
pequena".
* Leonardo Boff e Teólogo.
https://www.alainet.org/pt/articulo/110634
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