Tentações do poder
26/09/2004
- Opinión
Os monges, em sua sabedoria, adotam em suas comunidades
recursos para "não cair em tentação", como rezamos no
Pai Nosso. Quem se sente mais próximo de Deus corre o
risco de confundir-se com Ele, como ocorreu a Adão e
Eva no Paraíso.
Quando ingressei na Ordem Dominicana, há quase quarenta
anos, havia a salutar prática do Capítulo de Culpas,
embora o nome não me parecesse adequado. Uma vez por
mês a comunidade fazia sua crítica e autocrítica. Cada
frade punha-se na berlinda, de modo que todos pudessem
avaliá-lo.
Em geral nutrimos, a respeito de nós mesmos, uma
opinião acima de nossos méritos. E julgamos que o
próximo pensa de nossa pessoa aquilo que gostaríamos
que ele pensasse. Daí a dificuldade de indagarmos de
nossos subalternos como avaliam o nosso desempenho,
quais as críticas que gostariam de nos fazer, como
ousou Jesus ao perguntar a seus discípulos como o povo
e, em seguida, eles próprios, encaravam a atuação dele
(Mateus 16,13-20).
Michel de Montaigne (1533-1592), que foi parlamentar em
Bordeaux e exerceu missões diplomáticas, em seus
"Ensaios" que todo político deveria ler afirmou:
"Nunca me ocorreu desejar um reino nem um império, nem
posições eminentes e de comando; não é o que viso: amo
demais a mim mesmo. A simples idéia do poder abafa-me a
imaginação."
Amós Oz, romancista israelense, aconselha a literatura,
exercício de imaginação, como antídoto ao fanatismo. E
indica as leituras de Shakespeare, Gogol, Kafka e
Faulkner.
O poder sobe a muitas cabeças. O que induz certos
políticos à prática da "carteirada", que consiste em
exibir o documento comprobatório de sua autoridade e
indagar: "Sabe com quem está falando?" Numa sociedade
civilizada, ele receberia em resposta a pergunta:
"Quem o senhor pensa que é?"
Católico convicto (morreu durante a celebração da
missa), Montaigne demonstrava aversão ao puxa-saquismo
e profundo respeito ao semelhante, sem distinção de
posição social. Por isso dizia: "se me desagrada lutar
contra um porteiro, como qualquer desconhecido, detesto
igualmente ver abrirem-se alas de admiradores à minha
passagem. Estou acostumado a uma condição discreta,
tanto por destino como por inclinação, e mostrei, em
minha conduta na vida, que antes me esforcei por fugir
às grandezas do que por elevar-me acima do lugar que
Deus me deu na sociedade. (Livro III, cap. 7). No
capítulo seguinte, ele registrou: "É prazer insípido e
prejudicial tratar com gente que nos admira sempre e
sempre nos segue" (III, 8).
O desapego ao poder é uma ascese rara entre políticos,
na linha do que sugeriu Jesus no capítulo 22 de Lucas:
"Os reis das nações as dominam e os que as tiranizam
são chamados Œbenfeitores¹. Quanto a vós, não deverá
ser assim; pelo contrário, o maior dentre vós torne-se
como o menor, e o que governa como aquele que serve."
(24-27)
Montaigne também chamou a atenção para essa dificuldade
lembrando que "Platão, que era um mestre em tudo o que
concerne ao governo dos Estados, absteve-se entretanto
de aceitar quaisquer funções" (III, 9).
É um desafio para o político ser fiel a si mesmo, às
suas origens, aos princípios que o conduziram à vida
pública, livre do risco de repetir com Fernando Pessoa
"fui o que não sou".
Montaigne teve melhor sorte, admitindo "desempenhei
cargos públicos sem me afastar de mim mesmo" (III, 10).
A experiência de quem conheceu inúmeras cortes
européias levou-o à conclusão de que "a maior parte das
funções públicas tem algo de cômico, Œtodos
representam¹, dizia Petrônio. Há quem mude e se
transforme em outro ser segundo o cargo que assume;
neste mergulham até o fígado e os intestinos, e mesmo
na privada agem como se estivessem no exercício de suas
funções. Gostaria de ensinar-lhes a diferençar as
saudações que dirigem à sua pessoa das que visam o
mandato, o séqüito ou a mula que montam" (III, 10).
Se todos que exercem funções de poder guardassem essa
consciência da "mula que montam", talvez não
confundissem os agrados de que são alvos com a sua
verdadeira identidade. No entanto, o mais nocivo no
poder é exatamente a possibilidade de reconstrução da
identidade, adornada pelas rubricas do cargo. É o que
explica o excessivo apego de muitos à função pública,
ainda que tragam fama de corruptos e se metam em
situações ridículas à cata de votos.
Melhor mula era a de Balaão, o sábio que custou a
entender que Deus escolhera lhe revelar os desígnios
divinos pela boca de seu animal. Ainda acredito que
Deus continua a preferir o que é Œdesprezível aos olhos
do mundo¹, como dizia Paulo, para manifestar-nos a Sua
vontade, como é o caso dos pobres e excluídos. Mas há
que ter humildade e prestar-lhes atenção.
* Frei Betto é escritor, autor de "Típicos Tipos
perfis literários" (A Girafa), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/110606
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