Direito de pensar
26/09/2004
- Opinión
O neoliberalismo, que se esforça em preparar o funeral
da história, insiste em que devemos deixar de pensar.
Devemos redizer nossas palavras e submeter o pensamento
ao pragmatismo tão em moda, como a arte da
prosperidade. Ou ao realismo cético de quem se dobra ao
pensamento único, delegando ao sistema o direito de
pensar por ele.
Quem acata tão impensada sugestão, afasta-se de Platão,
que fazia do ato de pensar uma forma de dialogar. Quem
se deixa dominar pelo medo de pensar, evita as
contradições e opiniões divergentes. Neste caso,
assimila o pensamento de quem o proíbe de pensar e se
alheia da busca da verdade, confundindo esta com a
autoridade. E o pior: julga que o seu pobre pensar é a
verdade lapidar, olvidando que há a sua verdade, a
minha verdade e a verdade verdadeira, como ensinavam os
antigos sábios chineses.
Toda verdade humana é relativa, e o nosso juízo
crítico, dotado de bom humor, deve sempre persegui-la,
peneirando-a na dúvida. Se deixamos de lado o bom humor
e o senso crítico, pisamos no alçapão dos dogmas e, lá
dentro, somos congelados com a nossa aparente verdade.
Ora, prefiro a maratona de Descartes, submetendo o meu
pensamento ao crivo da dúvida, de modo a construir, por
uma seqüência de operações, uma representação mental da
realidade.
Pensar é calcular, dizia Hobbes, que não estava falando
de sua conta bancária. Pensar é unificar representações
numa consciência, afirmava Kant, mestre na lapidação de
conceitos. Wittgenstein enfatizava que pensar é
elaborar proposições dotadas de sentido.
Pensar não é abraçar o que a minha mente concebe. É
desmascarar o saber travestido de pensamento. Como
lembrava o velho Marx, se toda essência e aparência
coincidissem, as ciências seriam supérfluas. Quem pensa
vê além das aparências. Mas as aparências seduzem a
ciência. Por isso, esta tende a rejeitar sua irmã
gêmea, a filosofia. Destituída de pressupostos
filosóficos, a parafernália tecnocientífica cai na
gandaia. Foge da ética como o diabo da cruz. Não é à-
toa que Hanna Arendt desconfiava do juízo político dos
cientistas. Não pela falta de caráter ao aceitarem
fabricar armas atômicas, nem pela ingenuidade (foram os
últimos a saber de que modo as armas seriam
empregadas), mas porque se auto-exilaram numa esfera
onde "a linguagem perdeu o seu poder".
(Ora, convém não divorciar as ciências da filosofia. O
que seria de Galileu sem Descartes? Caso contrário, não
saberemos aprimorar o ser humano).
O sistema, entretanto, insiste: demita-se do seu
pensar. Atrofie a sua imaginação política. Não queira
modificar a realidade.
Eu reajo: quero ser livre! Ele me responde: liberdade
não é pensar, é desfrutar. E isto não depende de sua
cabeça, mas de seu bolso. Não perca tempo sendo voz
discordante ou fazendo eco às opiniões divergentes. Não
vê que a filosofia e a ética foram banidas das escolas?
A minha sina, entretanto, é pensar. Encontrar as
mediações que encarnem minhas utopias em topias. Tornar
possível o desejável - desbancar a hegemonia dos
valores econômicos, livrar a cultura da condição de
refém do mero entretenimento, reduzir
significativamente a exclusão social.
Estreitam-se sempre mais os vínculos entre bens
culturais e bens de consumo. Um e outro passam a ser
monitorados por um princípio único: satisfação ao
consumidor. Portanto, nada de produções culturais
críticas, propositivas, emblemáticas, subversivas. Tudo
deve ser muito "clean", comportado, sentimental,
melodramático e conformista.
Penso, logo resisto. E acho graça nos arautos do fim
das ideologias. Ora, ninguém é capaz de arrancar os
óculos que estão atrás dos olhos e pelos quais
enxergamos a realidade. Não ignoro minhas ignorâncias.
Por isso, dilato a minha fome de conhecimento. Exerço a
minha atividade crítica. Desmascaro o consensual. Ponho
em questão as representações coletivas e as idéias
estabelecidas. "Não sei por onde vou, mas sei que não
vou por ai", grito com José Régio.
* Frei Betto é escritor, autor de "A Obra do Artista
uma visão holística do Universo" (Ática), entre outros
livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/110603
Del mismo autor
- Homenaje a Paulo Freire en el centenario de su nacimiento 14/09/2021
- Homenagem a Paulo Freire em seu centenário de nascimento 08/09/2021
- FSM: de espaço aberto a espaço de acção 04/08/2020
- WSF: from an open space to a space for action 04/08/2020
- FSM : d'un espace ouvert à un espace d'action 04/08/2020
- FSM: de espacio abierto a espacio de acción 04/08/2020
- Ética em tempos de pandemia 27/07/2020
- Carta a amigos y amigas del exterior 20/07/2020
- Carta aos amigos e amigas do exterior 20/07/2020
- Direito à alimentação saudável 09/07/2020