Soy loco por ti
03/08/2004
- Opinión
Fórum Social das Américas revela um continente ameaçado de
desnacionalização, mas marcado por uma nova resistência anti-
colonial e anti-capitalista que recupera, entre outras fontes, a
tradição indígena
Nada teria sido mais adequado, para abrir o Fórum Social das Américas (FSA), que
a homenagem a Pachamama, realizada em 26 de julho, no centro histórico de Quito.
Símbolo atávico da terra e da fecundidade, esta deusa fêmea foi ofuscada durante
séculos, primeiro pelo império incaico - que preferia o culto de Inti e Quilla,
deuses viris -, depois pelos espanhóis e seus "extirpadores de idolatrias" .
Mas, ao contrário dos deuses incas, Pachamama regressou. Em homenagem à
divindade pagã que cozinha, bebe, gosta de sexo e tem filhos, enterra-se hoje a
placenta dos recém-nascidos, para que a criança tenha saúde; e cachos de cabelos
dos amantes, para que o amor perdure. É ela, em retribuição, quem recolhe nos
braços os esgotados, os maltrapilhos, os que chegaram ao fim da viagem. Sob o
solo, os mortos florescem.
Como se rebobinasse o mito, o FSA mostrou uma América em transe entre
recolonização e ressurgimento. Ao longo de seis dias, 10 mil participantes,
representando 814 organizações, de 32 países, envolveram-se em 429 atividades
diferentes. Foi, mais uma vez, um encontro marcado pela diversidade. Os temas
tratados nas oficinas e seminários vão do direito às cidades à liberdade de
orientação sexual; do mercado petroleiro mundial à relação entre escritores e
direitos humanos; da vigência da educação popular a uma feira sobre soberania
alimentar e sementes. Mas basta um olhar mais profundo na programação para
revelar o predomínio de dois focos. Examinou-se em profundidade as diversas
ameaças de recolonização do espaço latino-americano. E destacou-se a emergência
de movimentos que, embora retomem as lutas para superar o capitalismo, rejeitam
os valores eurocêntricos e recuperam, num novo patamar, a tradição comunitária
indígena.
Da denúncia à ação comum
A crítica à desnacionalização foi feita em profundidade. Tratou-se do avanço do
dólar na América Latina (no Equador, ele já é moeda oficial; nos demais países
da região, a "livre" movimentação dos capitais obriga os Estados a destinar ao
pagamento de juros os recursos desviados dos serviços públicos e do estímulo ao
desenvolvimento). Discutiu-se a multiplicação de bases militares norte-
americanas. Analisou-se os tratados de "livre" comércio que transformaram as
economias do Chile e da América Central em satélites dos EUA, e ameaçam fazer o
mesmo com Peru, Colômbia e Equador.
As denúncias não eram acadêmicas. Quem as fez, quase sempre, foram as redes de
movimentos sociais e ONGs que se espalharam pelo continente nos últimos anos,
sob a forma de "campanhas". Impulsionadoras, entre outras, das lutas contra a
ALCA, pela soberania alimentar, pela auditoria da dívida pública, pelo respeito
à diversidade, pela livre orientação sexual, estas iniciativas fizeram do Fórum
Social das Américas seu grande ponto de convergência. Promoveram encontros que
permitiram troca de informações e experiências entre organizações de muitos
países, e que serviram para desencadear novas ações comuns. No dia 30, uma
Assembléia de Movimentos Sociais procurou coordenar estes esforços. Dirigida por
Gilmar Mauro, do MST brasileiro, a reunião distingüiu-se das realizadas, em
outros Fóruns, sob o mesmo nome. Não se deteve na aprovação de um "documento
final", nem em estabelecer barreiras entre "movimentos" e "ONGs". Cada uma das
quinze campanhas que definiram agendas de mobilização durante o FSA teve voz
para compartilhar suas propostas com as demais. Nos próximos dias, se fará um
esforço para articular as agendas.
Utopia e movimento indígena
Mas Quito foi também espaço para a utopia. Outras oficinas e seminários
permitiram debater novas formas de resistência ao capitalismo. Seu sujeito
principal é, em muitos casos, o movimento indígena. No Equador, ele invadiu a
cena política a partir de 1990. Promoveu levantes, derrubou um presidente,
alterou a Constituição, transformou-se em símbolo de transformação social. Na
Bolívia, ergueu-se contra a privatização do gás e da água e afastou o governante
que procurava promovê-la. No Peru, provocou a queda de Alberto Fujimori e mantém
acossado Alejandro Toledo, que se elegeu contra as políticas neoliberais mas
tentou aprofundá-las, ao chegar ao poder. Habitantes originais da América,
orgulhosa s de sua cultura que resiste há cinco séculos, as nações indígenas
erguem-se contra o que vêem como um saque às riquezas do continente. Oferecem,
como alternativa, a idéia de que certos recuros estratégicos devem ser
considerados bens comuns da humanidade. Retomam legados pré-colombianos, como a
comunidade e os conceitos de partilha e reciprocidade. Procuram atualizá-los,
para que contribuam na busca de novas formas de democracia e socialismo.
Esta nova mirada não se sustentaria sem sólida construção intelectual. Quito
consolidou o papel de pelo menos dois pensadores orgânicos ligados ao Fórum
Social Mundial. Presenças constantes nos FSMs, o sociólogo português Boaventura
de Souza Santos e o teólogo belga François Houtart participaram sem descanso de
conferências, seminários, oficinas, entrevistas coletivas, reuniões privadas com
diversos movimentos. Boaventura contribuiu também, de forma ativa, com outros
eventos relacionados ao FSM, como o encontro de sua comissão de Metodologia e
Conteúdos.
Quijano, teórico do ressurgimento
Mas talvez caiba ao peruano Aníbal Quijano, também sociólogo a condição de
teórico mais claramente ligado ao FSA. Herdeiro do marxismo latino-americano,
ele acompanha e estuda há décadas os movimentos indígenas. Seu contato com eles
permitiu-lhe construir uma teoria muito peculiar sobre o papel do Estado, a
revolução e a construção de uma nova sociedade na América Latina.
Não se deve atribuir ao acaso o fato de o pequeno Equador ter sido palco de tão
importantes novidades. Foi lá, há pouco menos de quinze anos, que o maioria
indígena reemergiu, assumiu sua condição de não-branca, reivindicou os direitos
de habitante original do continente e se transformou em portadora das esperanças
dos de baixo. Este movimento, que chegou a elever um presidente, enfrenta hoje
um período de dificuldades. Cometer enganos é um peso que cabe aos que largam na
frente. Mas as esperanças de un novo futuro para a região parecem estara
depositadas, cada vez mais, nos que ousam – e não nos que perdem a oportunidade,
por medo de errar.
Leia mais:
Nas próximas edições, as idéias de revolução e nova democracia formuladas por
Aníbal Quijano; as ameaças de recolonização da América Latina; a resposta do
movimento indígena; e o caso exemplar do Equador, onde esta retomada começou.
Publicado em Porto Alegre 2003: 04/08/2004
http://www.portoalegre2003.org/publique/cgi/public/cgilua.exe/we
b/templates/htm/1P4OP/view.htm?user=reader&infoid=8882&editionse
ctionid=243
https://www.alainet.org/pt/articulo/110332
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