A era da ética
31/05/2004
- Opinión
As imagens de torturas a prisioneiros iraquianos, aliás
cotidianas, segundo o NYTimes de 31 de maio, nas prisões norte-
americanas, são reveladoras do descalabro ético a que chegamos.
Elas tem a ver com a crise de nosso paradigma civilizatório. Com
efeito, a era que está terminando se fundou na vontade de
conquista e dominação dos outros e da natureza, quase sempre com
o recurso da violência direta. O capital, a acumulação privada
de bens materiais, o consumismo, a competição, a exaltação do
indivíduo e a espoliação dos recursos naturais caracterizam esta
era. Junto a valores irrenunciáveis, não se pode desconhecer um
legado perverso: uma humanidade barbarizada e dividida entre
incluidos e excluidos, uma Casa Comum depredada e uma máquina de
morte montada, capaz de destruir o projeto planetário humano e
de afetar profundamente o sistema da vida. Tudo indica que ela
já realizou suas virtualidades históricas. Sem capacidade de
persusão, precisa usar a violência para se manter, o que agrava
sua situação. Se quisermos garantir nossa presença no processo
evolucionário precisamos de outro arranjo civilizatório que nos
crie condições de futuro e de sustentabilidade.
Em outras palavras, precisamos de uma revolução no sentido
clássico da palavra, vale dizer, do estabelecimento de uma nova
utopia, de um novo rumo com outras estrelas-guias que orientam a
caminhada, desta vez, da humanidade como um todo. Embora com
pretensões universalistas, todas as revoluções anteriores foram
regionais. Agora importa que ela seja global porque globais são
os problemas que exigem um equacionamento global. E ela é
urgente, porque o tempo do relógio corre contra nós. Ou a
faremos dentro de um tempo limitado (a ONU estabelece até o ano
2030, Joanesburgo até 2050) ou será tarde demais. O sistema-
Terra-Humanidade perderá sustentabilidade. O impensável pode
virar provável.
Sobre que base se fará esta revolução?Cristovam Buarque, nosso
político-pensador, nos acenou para a pista verdadeira.
Referindo-se à segunda abolição, a da pobreza, escreveu:
precisamos de "uma coalizão de forças que se fará por razões
éticas, muito mais do que por razões políticas".
Pensando na situação mundial equivale dizer: precisamos
urgentemente de uma ética planetária para garantir nosso futuro
comum. Como se fará isso? Não será em poucas linhas que
desenharemos seu perfil, coisa que tentamos em nosso ensaio,
fruto de muitos intercâmbios, Ethos Mundial, um consenso mínimo
entre os humanos (Sextante 2004).
Mas precisamos antes de tudo uma utopia: manter a humanidade
re-unida na mesma Casa Comum contra aqueles que querem bifurcá-
la fazendo dos diferentes desiguais e dos desiguais
dessemelhantes. Em seguida, precisamos potenciar o nicho onde
irrompe a ética:a inteligência emocional, o afeto profundo
(pathos) onde emergem os valores. Sem sentir o outro em sua
dignidade, como semelhante e como próximo, jamais surgirá uma
ética humanitária. Depois importa viver, no dia a dia, para além
das diferenças culturais, três princípios compreensíveis por
todos: o cuidado que protege a vida e a Terra, a cooperação que
faz com que dois mais dois sejam cinco e a responsabilidade que
zela pelas consequências de todas as nossas práticas para que
sejam benfazejas. E por fim, alimentar uma aura espiritual que
dará sentido ao todo. A nova era ou será da ética ou não será.
* Leonardo Boff é Teólogo
https://www.alainet.org/pt/articulo/109999
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