Balé & tortura

29/04/2004
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Estive em Roma no último fim de semana, a convite da Comunidade de Capodarco, que cuida de pessoas portadoras de deficiências físicas e mentais. Fundada em 1971 pelo padre Franco Monterubbianesi, hoje encontra-se implantada em treze cidades italianas e também no Equador, na Guatemala e na Albânia. As PODE (Pessoas Portadoras de Direitos Especiais), como prefiro chamá-las, vivem em comunidade, acompanhadas por um corpo de voluntários e profissionais da saúde. Algumas são adotadas por famílias sócias da Capodarco. Mantida com recursos do Estado e por doações, a instituição visa a capacitar profissionais dessa área de tratamento, reabilitar seus membros e inseri-los profissionalmente no mercado de trabalho. Seus primeiros voluntários foram jovens objetores de consciência que se recusaram a prestar serviço militar. Hoje, a Itália possui a alternativa de serviço civil voluntário. Para facilitar a inserção profissional de seus membros, Capodarco mantém cooperativas. Pelas ruas de Roma há caixas amarelas nas quais o público deposita roupas usadas que são recuperadas pela comunidade e revendidas ou recicladas em outros materiais têxteis. Há também uma cooperativa de agricultura biológica, sem uso de agrotóxicos, da qual produzem vinhos. Muitos portadores de deficiências são também profissionalizados através de empresas obrigadas, por lei, a incorporá-los a seus quadros de funcionários. Na sexta, 23 de abril, Butterfly, grupo de dança de Capodarco apresentou, num teatro de Roma, o espetáculo "Declaração de Paz". Emocionante ver aquelas pessoas superarem seus limites físicos e mentais num balé de grande sincronia de movimentos e qualidade estética, ainda que um deles em uma cadeira de rodas. O palco foi ocupado em seguida pela Companhia Luar de Dança, integrada por jovens de famílias pobres de Duque de Caxias (RJ), que apresentou o espetáculo "Fome Zero". A tournée iniciada por Roma percorrerá, durante um mês, outra cidades italianas. Dirigida pela bailarina e coreógrafa Rita Serpa e criada em 1990, Luar de Dança mobiliza, hoje, 1.200 crianças e jovens, graças ao apoio da Petroflex, empresa transnacional com sede no Brasil. Participei ainda de um seminário sobre o direito à água e à alimentação, em companhia de Ricardo Petrella, secretário do Comitê Internacional do Acordo Mundial sobre a Água. Ele presidirá em novembro, em Porto Alegre, o II Fórum Mundial sobre a Água. Diversos governos provinciais da Itália estão financiando, no semi-árido brasileiro, a construção de cisternas de captação de água da chuva. No sábado, falei sobre os programas sociais do governo Lula num grande ato, abrilhantado por fotos de Sebastião Salgado e músicas de Chico Buarque, em homenagem ao MST, no qual foram exibidos vídeos e documentários. Mas nem tudo são boas notícias daquele lado do mundo. Além do apoio do governo Berlusconi à invasão do Iraque, a Lega, partido do norte do país, enviou ao Congresso um projeto de lei legalizando a tortura a supostos terroristas. Recebeu o apoio da Forza Italia, partido do governo, e da Alleanza Nazionale, que congrega os ex-fascistas. Pelo texto da proposta, todo presumível terrorista preso na região Padana, em torno do rio Po, poderá ser torturado pela polícia, porém uma única vez. Uma segunda tortura será considerada abusiva. Os parlamentares discutem se, detido de novo meses depois, a mesma pessoa poderá sofrer outra tortura ou será considerada a segunda da sérieŠ Enquanto isso, a polícia se pergunta, caso o projeto seja aprovado, que brutal método de tortura deverá ser adotado para forçar a confissão na única oportunidade legal. Eis o contraste dessa nossa pobre e maravilhosa aventura humana: enquanto na capital italiana deficientes físicos e mentais dão exemplos de cidadania e arte, de mãos dadas com jovens da Baixada Fluminense, no norte parlamentares se empenham em legalizar um dos mais hediondos crimes: a tortura. Se a nossa fome de beleza não for mais profunda, em breve seremos reféns do terrorismo e, destituídos de toda civilidade, estaremos dandos provas de que em matéria de insanidade política somos ótimos alunos. Com o agravante de que não há Comunidade de Capodarco que dê conta desse tipo de demência. * Frei Betto é escritor, autor de "Gosto de Uva" (Garamond), entre outros livros.

https://www.alainet.org/pt/articulo/109835
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