A Espanha disse "não"
21/04/2004
- Opinión
José Luís Zapatero, presidente do governo espanhol, disse não à
coligação bélica que, sob o comando dos EUA, ocupa o Iraque.
Antecipou o retorno de suas tropas, antes previsto para 30 de
junho. A Espanha não crê que o Conselho de Segurança da ONU seja
capaz de suplantar a hegemonia americana no Iraque e, assim,
estabelecer as vias da paz imediata. A situação no país ocupado se
deteriorou de tal maneira que "as forças espanholas já não podem
cumprir sua missão de garantir a segurança do país", anunciou o
governo de Zapatero.
Nas pegadas dos 1.218 militares da Espanha sairão também os 370
enviados por Honduras. Por menos democrático que tenha sido Saddam
Hussein, o argumento de combater a ditadura não convém à Casa
Branca, que apóia governos autocráticos no mundo árabe e solapou,
nos anos 60 e 70, os regimes democráticos da América Latina,
incluindo o Brasil.
Lançou-se mão, portanto, ao pretexto das armas de destruição em
massa. O Iraque foi literalmente revirado pelos inspetores da ONU.
Não encontrou-se nenhum indício. Os armamentos de que dispunha
Saddam Hussein haviam sido ofertados pelos EUA na época em que
usaram o ditador como bucha de canhão no confronto com o Irã.
A Espanha diz não à guerra, como declarou não ao terrorismo ao
reagir, frente ao 11 de março, de modo contrário à reação
amearicana perante o 11 de setembro. O governo dos EUA deixou-se
intimidar e disseminou o medo em sua população, reforçando
obsessivamente a segurança interna. Os espanhóis, ao contrário,
foram às ruas, numa demonstração ostensiva de não ao medo e sim à
liberdade.
O terrorismo é a subversão das leis da guerra. Bush confessou,
perante o Congresso, que não lhe passou pela cabeça que aviões
fossem usados como mísseis. Devia ter aprendido a lição de que o
terror não tem endereço. É ubíquo, como as partículas quânticas
que nunca se encontram onde são localizadas. Inútil arrasar o
Iraque. Não é lá que se encontra Bin Laden.
Ainda que o saudita seja assassinado, não será a morte do terror.
Este desarticula exércitos e todas as teorias militares, dos
ensinamentos de "A Arte da Guerra", do general chinês Sun-tzu,
publicado há cerca de 500 a.C., ao tratado "Sobre a Guerra", de
autoria de outro general, o alemão Carl von Clausewitz, editado em
1833.
O terror rompe as fronteiras dos campos de batalha, agora
alargadas para o centro de Nova York ou as estações ferroviárias
de Madri. Suas táticas desarmam estratégias, sua invisibilidade
desorienta as forças convencionais, sua irracionalidade surpreende
a nossa lógica.
Só há duas maneiras de combater o terror. A primeira, entrando no
seu jogo e abraçando a lei do talião: o terrorismo de Estado. É
uma opção imoral e inútil. Sacrifica inocentes, favorece a
corrupção e aniquila, primeiro, o governo que o acoberta. A
segunda, mais difícil e eficaz, é combater as suas causas -
desigualdades, discriminações, fundamentalismos e exclusões.
Enfim, seguir o conselho milenar do profeta Isaías, promover a
justiça para obter a paz.
Conta Heródoto que, em 546 a.C., a cidade de Argos entrou em
conflito com Esparta. No campo de batalha, havia trezentos
soldados de cada lado, em respeito ao equilíbrio de forças. A
disputa, acompanhada à distância por espartanos e argivos,
terminou com apenas três sobreviventes: um espartano e dois
argivos. O primeiro manteve-se no terreno da guerra, enquanto a
dupla inimiga retornou a Argos.
Esparta comemorou a vitória por não fugir do campo de batalha.
Argos também proclamou-se vencedora, por sua superioridade
numérica no balanço final. Essa competição retórica transmutou-se
em arrogância, que se fez prepotência, que resultou numa batalha
renhida entre os habitantes das duas cidades.
Se não prestarmos atenção no exemplo da Espanha, logo todos nós
deixaremos de ser espectadores para assumir o protagonismo na
carnificina geral. Ontem foram os hereges e judeus; hoje, os
muçulmanos e árabes; amanh㊠Como Argos e Esparta, estaremos nos
enfrentando segundo a lógica do terror, que imprime ao genocídio e
ao suicídio um gosto necrófilo de vitória.
* Frei Betto é escritor, autor de "Típicos Tipos - coletânea de
perfis literários" (A Girafa), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/109805
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