A paixão de Cristo
08/04/2004
- Opinión
O filme a Paixão de Cristo de Mel Gibson não é a Paixão
de Cristo. É a Paixão de Mel Gibson pelo sangue, pelo
chicote, pela tortura e pela cruz a propósito da
crucificação de Jesus. A forma escolhida de dramatização
pouco tem a ver com os relatos evangélicos da Paixão,
mas muito com o espetáculo e o simulacro, tão a gosto da
cultura de comunicação de massa. O filme é tão excessivo
e atordoador que o efeito final é: "isso não pode ser, é
simplesmente demais". A questão nem é a seqüência
ininterrupta de violência mas a capacidade de Jesus de
suportar aquilo tudo sem morrer pelo menos algumas
vezes. Todo sofrimento possui uma inarredável dignidade
mas quando é artificialmente provocado fica grotesco e
revoltante. É dor pela dor, é sangue pelo sangue, é cruz
pela cruz. Numa palavra, é dolorismo e sadismo
Isso não é nem humano nem divino. Recusamo-nos a crer num
Deus que queira tal preço para redimir a humanidade. Mas
ele não é o Deus de Jesus, é o Deus de Mel Gibson. Ele
não se faz merecedor de respeito e adoração. Aqui está o
calcanhar de Aquiles de seu filme: a imagem de Deus,
cruel e sanguinário
A obsessão pela dor e pelo sangue contamina todos os
personagens e o próprio Cristo. Em nenhum momento se
desgruda da cruz. Não é Simão Cireneu que ajuda a Jesus a
carregar a cruz, é Jesus que ajuda a Simão Cireneu. O
auge da obsessão é atingido quando Jesus se arrasta
sozinho para a cruz para nela ser pregado. Os dois
tombos da cruz com ele já pregado são inverossímeis e de
uma crueldade insuportável
Tudo o que é sadio pode ficar doente. Aqui nos
confrontamos com uma versão doentia da Paixão de Cristo,
longe da versão contida e digna dos quatro evangelistas.
Falam sim que foi esbofeteado, zombado, desnudado,
flagelado e coroado de espinhos. Mas nada de
excessivamente cruel e sem piedade como em Mel Gibson. Os
quatro evangelistas com extrema objetividade atestam:
"depois de se terem divertido e de escarnecerem-nos
conduziram-no para fora a fim de o crucificarem"
O filme se filia a uma das várias interpretações da
Paixão de Cristo, a do sacrifício cruento, prevalecente
na liturgia das Igrejas e elaborada depois
geologicamente por Santo Anselmo (+1109). Em seu famoso
livro "Por que Deus se fez homem" afirma: se fez homem
para poder sofrer e derramar seu sangue e assim expiar a
ofensa feita pela humanidade a Deus. Sinistramente diz
que Deus até encontra bela a morte de cruz, porque assim
aplaca sua fome de justiça. Esta visão gibsoniana é
errônea pois destrói a imagem que Jesus nos legou de
Deus, como Pai de infinita ternura. O Pai não quis a
morte de Jesus. Quis sim sua fidelidade até o fim, mesmo
que implicasse a morte. Só é digna a cruz e a morte,
conseqüência da luta contra a cruz e a morte impostas às
pessoas e quando expressam solidariedade com os
crucificados
Seguramente muitos quererão aprofundar as questões
suscitadas pelo filme de Mel Gibson. Recomendo meu
próprio livro "Paixão de Cristo--paixão do mundo: os
fatos, as interpretações e o significado ontem e hoje"
(Vozes). Ele não deve ser ruim pois ganhou nos EUA, uma
vez traduzido, o prêmio do livro religioso do ano (1978)
e a Congregação da Doutrina da Fé, a ex-Inquisição, o
analisou e me obrigou a um longo processo de explicação.
Importa não isolar a Paixão de Jesus de sua vida e de
seu compromisso. É ai que ganha sentido e em comunhão com
a Paixão dolorosa do mundo.
* Leonardo Boff é Ttólogo
https://www.alainet.org/pt/articulo/109733
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