O Cristo de Mel

06/04/2004
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Mel Gibson mostra, em seu filme A Paixão de Cristo, um Jesus dilacerado pelos mais atrozes sofrimentos. As cenas são chocantes ou, como disse D. Geraldo Magela, cardeal de Salvador, "cruéis". O que está por trás dessa ótica dolorista da paixão de Jesus? Acima de tudo, um jogo de marketing. Quem lida com entretenimento sabe que a receita de sucesso exige dois ingredientes: sexo e/ou violência. Em nosso inconsciente oscila o pêndulo que nos alerta, continuamente, para algo que nenhum outro ser vivo sabe: nascemos e haveremos de morrer. O entretenimento deturpa essas polaridades e associa geração de vida à sexualidade e daí à pornografia, enquanto a morte, extinção de vida, ganha o caráter de violência. O uso desses dois ingredientes hipnotiza multidões. Mel Gibson partiu de uma ótica teológica muito em voga no passado da Igreja: de tal modo ofendemos a Deus com os nossos pecados, que só a morte torturante de Seu Filho é capaz de nos redimir de tamanha culpa. O Pai entrega o Filho à morte para, com Seu sangue, aplacar a Sua sede de vingança contra nós mortais. Ao morrer crucificado, Jesus lava os pecados de toda a humanidade. Seria preciso contextualizar a morte de Jesus numa sociedade em que o direito prescrevia por resgate de prisioneiros escravos, para entender esse teatro mórbido no qual Deus faz sofrer e mata Deus, para compreender a ótica equivocada de Mel Gibson. O centro da vida de Jesus não estava em Seu sofrimento e morte, mas em Sua ressurreição, sem a qual, frisa Paulo, a nossa fé seria vã. E o mais importante na vida de Jesus não foi quanto ele sofreu, mas quanto e como ele amou - assim como só Deus ama. Conheci prisioneiros que, na mão de torturadores, sofreram mais que Jesus. Mas ninguém amou como Ele, que jamais fez um gesto de desamor e, portanto, não conheceu o pecado. Não foi para sofrer que o Verbo se encarnou. Foi para amar e nos trazer luz. O Seu amor em nada se parecia a essa complacência que reduz o ato de amar a um mero sentimento. Amar é ser verdadeiro consigo e com o outro, ainda que isso doa em ambos. É praticar a justiça e tudo fazer para que "todos tenham vida e vida em abundância" (Jo 10,10). Por isso morreu Jesus, vítima de um sistema injusto. Morreu como um prisioneiro político, condenado à morte adotada pelo poder romano: a cruz. Morreu, sim, pelos nossos pecados, na medida em que a injustiça que praticamos cria estruturas que asseguram plenitude de vida a uns poucos e condenam a maioria à morte precoce. O Cristo de Mel é amargo. É expressão do desamor nosso e de deus. Mas Deus é amor e jamais deixa de nos amar. Essa dimensão da paixão - agora no sentido de estar apaixonado por alguém - é que falta no filme. Mel nos oferece uma estopa de fel. Os Evangelhos, felizmente, nos oferecem caminho, verdade e vida - o amor incondicional de Deus que, em Jesus, nos indica a via da felicidade, a ponto de Ele exclamar: "Eu vos digo isso para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena" (Jo 15, 11). * Frei Betto é autor de "Entre todos os homens" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/109723
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