A face invisível do terror

01/04/2004
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Há obras (des)humanas que ultrapassam a minha compreensão. Como latino-americano, posso compreender as revoluções, como a mexicana e a cubana, assim como os europeus comemoram a Revolução Francesa, a resistência antifranquista na Espanha e a que derrotou o nazifascismo na Alemanha e na Itália. Frade dominicano, entendo a lógica de meu confrade Tomás de Aquino ao justificar o tiranicídio (De Regimine Principum 1, I Cap. 9; Suma, III, q. 42 a.2 c.). Mas não posso compreender o terrorismo, embora eu tenha carregado esse estigma que me foi imposto pela ditadura militar brasileira durante os quatro anos em que estive encarcerado. O que se passa na mente de uma pessoa que prepara, cuidadosamente, cargas de explosivos a serem detonados numa estação ferroviária? Ela sabe que ali a morte ceifará vidas de quem nunca lhe fez ou contrariou os seus interesses. Morrerão crianças e idosos, donas-de-casa e trabalhadores. Talvez até mesmo um jovem que admira o terrorismo e julga o terror uma forma legítima de protesto. O terror não é uma questão ideológica. Ele não tem proposta, programa, princípios. É um problema psicológico, patológico. Não se trata de defender uma causa, derrubar um tirano, conquistar direitos ou mudar as estruturas de um país. Trata-se de espetacularizar o ódio. O terrorista vinga-se, de fato, de seu complexo de inferioridade. Ele se sente excluído, alvo de uma discriminação que se interioriza em sua alma como personificação de tensões políticas. Ele é a individuação de povos historicamente oprimidos. Como não dispõe de meios de erradicar a opressão, promove um gesto apocalíptico: derruba as torres gêmeas de Nova York e assassina duzentos inocentes nas estações ferroviárias de Madri. Importa-lhe o ato em si, o clamor de seu desespero, o prazer sádico de ver corpos despedaçados voando pelos ares, a onipotência de pautar a mídia, o horror elevado ao seu grau máximo. Não sejamos cínicos. O terror sempre esteve embutido em todas as empresas colonizadoras e políticas discriminatórias. Na América Latina, foram cerca de 150 milhões de indígenas passados ao fio da espada, triturados aos dentes de cães raivosos, queimados ao calor de fogueiras inquisitoriais. E os africanos caçados como bichos e trazidos como escravos às nossas minas e lavouras? E as bombas e os assassinatos promovidos pela CIA para implantar ditaduras em nossos países? Que outro nome dar à fabricação, em países do Primeiro Mundo, de minas que decepam pés e mãos, e produzem cegueira e morte em nossas crianças que correm pelos campos? Ainda que o passado registre tantas atrocidades e um governo prefira poluir o Planeta a afetar o lucro das empresas de seu país, não podemos ceder à lei do talião. Violência sempre haverá de gerar violência. Cria-se a espiral da violência, alertava dom Helder Camara. Se quisermos romper esse círculo vicioso, a saída é a que o profeta Isaías apontou há vinte e sete séculos: a justiça, da qual a paz surgirá como fruto maduro. Jamais haverá paz como mero equilíbrio de forças. Ao ocupar um país como o Iraque, o Ocidente ocupa, com seu poderio bélico, corações e mentes, reificando cidadãos que, revoltados, perdem o discerninento e se igualam aos mísseis que, disparados, não fazem distinção entre militares e civis, guerrilheiros e inocentes. A Espanha enlutada não merece ser transformada na Espanha revoltada. O terroristas devem ser punidos com o rigor da lei, mas sem que o Estado se iguale a eles. Ao contrário, o Estado deve fazer cessar a espiral da violência, adotando medidas de proteção da população e, ao mesmo tempo, que impeçam as novas gerações de serem contaminadas pela ânsia de relevar a vingança à categoria de castigo implacável. O horror das bombas nazistas atiradas sobre Guernica ficou gravado, para sempre, na tela de Picasso. Agora, as figuras apocalípticas saltaram da tela para as ruas de Madri. A diferença é que, hoje, o inimigo não tem rosto. E todos somos alvos em potencial. Até que erradiquemos as causas que forjam terroristas e favorecem o terrorismo de Estado. * Frei Betto é autor de "Batismo de Sangue" (Casa Amarela), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/109709
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