Quatro mulheres e muito amor
08/03/2004
- Opinión
Comemora-se o Dia Internacional da Mulher a 8 de março.
Metade da humanidade é mulher e a outra metade, filhos de
mulheres. A um observador desatento estas quatro mulheres
que me fascinam seriam figuras contraditórias entre si.
Todo paradoxo, porém, é um enigma, chave da sabedoria.
Maria, a mãe de Jesus, cujo nome prefiro ao título de
Nossa Senhora, sempre me impressionou pela ousadia. Numa
sociedade patriarcal, ela assume radicalmente os
desígnios divinos, a ponto de abraçar uma gravidez que
confundiu o próprio noivo, José, deixando-a, aos olhos
alheios, sob suspeita de adultério. Um dos sinais de que
somos capazes de fazer a vontade de Deus é, sem
ressentimentos, manter-nos indiferentes à opinião alheia.
Extasiada pela graça recebida, ela canta, no Magnificat,
o prenúncio do significado da presença de Jesus entre
nós, acentuando que o Senhor "derrubou de seus tronos os
poderosos e elevou os humildes; saciou de bens os
famintos e aos ricos despediu de mãos vazias" (Lucas 1.
52-53).
Prima de Isabel, mãe de João Batista, ela presenciou a
militância e a morte de João e de seu filho em favor de
um novo tempo - o Reino de Deus - livre de injustiças.
João é degolado por denunciar a corrupção das autoridades
e Jesus crucificado sob acusação de blasfêmia e de
subversão. Sem jamais reter para si o filho que veio para
servir a todos, Maria é agraciada por assistir à
Ressurreição e preceder-nos, por sua assunção, na glória
da comunhão trinitária.
Em Maria, Deus ama a mulher que gera o Amor feito carne.
Quis ele que a encarnação tivesse início nas entranhas de
uma camponesa palestinense, tão pobre que se viu obrigada
a dar à luz num cocho, entre animais.
Tais fatos tanto incomodam que buscamos amenizá-los
realçando a "docilidade" de Maria, como se os homens
fossem deuses a cujos desígnios devem se submeter as
mulheres, e emoldurando o presépio natalino num conto de
fadas.
Hipácia, nascida em Alexandria em 370, foi a última
grande cabeça científica a trabalhar na famosa biblioteca
daquela cidade. Astrônoma, física, matemática e filósofa,
consta que era muito bonita e nunca se casou.
O cristianismo estava em plena expansão e todo saber que
não coincidisse com seus dogmas era considerado suspeito
de paganismo. Como Plotino, Hipácia era discípula da
escola neoplatônica fundada em Alexandria por Amônio
Sacas, no século III. Isso a tornava alvo das suspeitas
de Cirilo, patriarca de Alexandria. Apesar da oposição do
bispo, continuou a escrever e a ensinar. Em 415, foi
atacada por cristãos fanáticos, seguidores de Cirilo, que
a arrancaram de sua charrete, rasgaram suas vestes e,
armados de conchas, esfolaram-na. Depois queimaram toda a
sua obra e seu nome foi esquecido. Em contrapartida,
Cirilo foi canonizado. Hipácia deixou-nos, contudo, o
exemplo de que uma mulher tem o direito de ser
independente de cabeça e de coração.
Teresa de Ávila (1515-1582) viveu na Espanha da conquista
da América, época de Las Casas e Góngora, Cervantes e
Lope de Vega. Monja carmelita, até 47 anos pouco
escreveu. Movida por irrefreável paixão divina, a pedido
de seus confessores, relatou em seis livros, uma
coletânea de cartas e algumas poesias, o modo como se
deixou possuir por seu Amado, a ponto de exclamar: "Morro
por não morrer". A adolescente que jogava xadrez e lia
romances de cavalaria, quando adulta percorreu a Espanha
fundando comunidades, nas quais centenas de moças
mergulharam na aventura da busca de Deus. Encarada com
suspeitas pela Inquisição, que requisitou suas obras, e
pelo representante papal na Espanha, que a considerava
"desobediente contumaz", Teresa jamais se considerou uma
santa, pelo contrário, e mesmo quando descrevia suas
experiências místicas fazia questão de observar:
"Como se há de entender isto, não o sei; justamente este
não-entender é que me causa grande alegria". Teresa de
Jesus resgatou dos céus o Deus medieval e, em pleno
Renascimento, centrou-O no coração humano. Fora da
experiência da oração, quem melhor nos revela a mística
de Teresa não é um teólogo, mas um pintor que lhe foi
contemporâneo, El Greco, cujas obras de flamejante
colorido expressa o que ela sentira e ensinara, convicta
de que todo ser humano é chamado a ser, nas palavras de
seu amigo João da Cruz, uma chama viva de amor.
A quarta mulher nasceu em 1926, nos EUA, com o nome de
Norma Jean Mortenson. Criança, sonhou que estava nua numa
igreja. Adolescente, posou despida para fotos de
calendários e, logo, tornou-se um dos maiores mitos de
Hollywood, onde ficou famosa como Marilyn Monroe. Seu
talento despontou em filmes como Os homens preferem as
louras (1953), O pecado mora ao lado (1955), Quanto mais
quente melhor (1959) e Os desajustados (1960).
Vítima da canibalização da máquina publicitária e
sufocada por uma carência que a induziu a intensa
rotatividade afetiva, Marilyn Monroe foi encontrada morta
em sua cama, na manhã de 5 de agosto de 1962. Talvez
tenha ingerido forte dose de barbitúricos ou, quem sabe,
sido assassinada para que seu silêncio assegurasse o
êxito da carreira política de amantes que posavam em
público como católicos exemplares. Tinha em mãos o
telefone. Para quem teria ligado? Nunca se soube. O poeta
e místico Ernesto Cardenal sugere que, do outro lado da
linha, Deus atendeu.
* Frei Betto é autor de "Gosto de uva" (Garamond), entre
outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/109540
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