O que é a chamada "ALCA Light"

13/02/2004
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
As negociações para a formação da ALCA vinham de arrastando de 1994, quando foi realizada a primeira cúpula de chefes de Estado das Américas; ali foram iniciadas as negociações que até agora pouco avançaram. Em 1994, era grande a ambição dos EUA em relação à formação de uma área de livre comércio "do Alasca à Terra do Fogo", e que abrangesse o máximo de setores da economia e dos processos de tomadas de decisão nos países do hemisfério. Desde então, um conjunto de fatores foi tornando o projeto original da ALCA cada vez mais difícil de ser implementado: a resistência de amplos setores sociais ao longo do continente, os impactos negativos do NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte, que inclui o Canadá, EUA e México), a percepção de alguns governos da região da perda de capacidade decisória que poderia resultar deste acordo, e até mesmo a apreensão de alguns setores ligados às indústrias nacionais. A partir da reunião ministerial de Miami, realizada em novembro de 2003, as negociações passaram a traduzir de forma mais clara o ambiente de dúvidas e de resistências cada vez mais presentes na maioria dos países do hemisfério. Diante da impossibilidade de se avançar no processo negociador tendo como referência a ALCA abrangente concebida pelos EUA há quase uma década, os países co- presidentes da ALCA (Brasil e EUA) apresentaram um novo formato para a condução das negociações, que está expresso nos itens "A Visão da ALCA" e "Instruções Gerais" da Declaração Ministerial de Miami que, resumidamente, define que de agora em diante a ALCA será negociada em dois pisos: 1) Um piso mínimo, ou seja, uma base comum aos 34 países, onde deverão ser incluídas obrigações em todos os temas que sempre existiram nas negociações da ALCA (acesso a mercados, agricultura, serviços, investimentos, compras governamentais, propriedade intelectual, política de concorrência, subsídios, anti-dumping e direitos compensatórios, e solução de controvérsias). A reunião de Miami, no entanto, não definiu o grau de compromisso a ser assumido pelos 34 países em cada um destes temas, e adiou estas decisões substantivas para a reunião do CNC (Comitê de Negociações Comerciais), realizado em Puebla entre os dias 2 e 6 de fevereiro de 2004, onde os vice-ministros tinham a missão de tentar dar substância ao acordo político de Miami. Puebla deveria definir, por exemplo, se o chamado piso mínimo seria de fato mínimo ou se ficaria mais próximo da proposta de ALCA cheia dos EUA (com amplos compromissos em cada tema, na maioria dos casos transcendendo em muito as regras da OMC); 2) Um segundo piso, onde os países podem assumir níveis distintos de compromissos adicionais no âmbito da ALCA, por meio de acordos bilaterais (acordos entre dois países ou blocos de países) e/ou plurilaterais (acordos entre mais de dois países ou blocos, mas sem incluir a totalidade dos países membros). As regras e procedimentos para as negociações de tais acordos seriam definidas em Puebla. É bom lembrar que os EUA, na semana anterior à reunião ministerial de Miami, anunciaram acordos bilaterais com Colômbia, Peru, Equador, Bolívia, Panamá e República Dominicana, em uma clara tentativa de isolar o Mercosul. O que está em jogo, tema por tema Temas - O que está em discussão * Agricultura Os pontos fundamentais que estão sendo debatidos no tema agricultura dizem respeito às tarifas para o comércio dos produtos agrícolas entre os países, aos subsídios dados por cada um dos países a seus produtos agrícolas ou, especialmente, à exportação destes, e a outros apoios nacionais aos agricultores (por exemplo, no caso dos EUA, os créditos à agricultura são um forte apoio interno). Mais recentemente, representantes brasileiros e de alguns outros países (como a Venezuela) têm procurado levar em consideração os temas ligados à agricultura familiar, mas embora essa preocupação já tenha aparecido nas discussões da OMC, é ainda pouco expressa no processo negociador da Alca. No tema Agricultura, os negociadores norte- americanos estão fortemente amarrados por sua legislação nacional para fazer concessões, assim como processos eleitorais em alguns países (como EUA e Canadá) limitam as possibilidades de seus negociadores. Nos países do Mercosul, bloco que tem o Brasil como economia mais importante, entretanto, os interesses do agronegócio acabam pressionando os negociadores a conseguir concessões nesta área, mesmo que ao custo de concessões em outras áreas estratégicas. * Acesso a Mercados Discussão semelhante a do tema agricultura (tarifas, subsídios e apoios internos) para os demais produtos, isto é, fundamentalmente os produtos manufaturados são o principal objetivo deste grupo. Os problemas com a posição norte-americana são os mesmos (fortes apoios internos à produção). Para países como o Brasil, também é sensível a discussão, uma vez que uma abertura ampla de mercados em alguns setores industriais poderia significar forte restrição às possibilidades de desenvolvimento nacional, com reflexos importantes no emprego industrial. Juntamente com agricultura e os temas ligados a subsídios e anti-dumping são os temas efetivamente referentes a comércio. Os países do Mercosul têm acenado com a possibilidade de zerar tarifas, desde que todos o façam, em prazos delimitados para todos os produtos (prazos limite : imediato, cinco anos, 10 anos, e mais de dez anos). Essa proposta pode representar evidentemente a eliminação de setores produtivos no interior dos países que não possuam competitividade em relação aos outros países da Alca no momento do zeramento das tarifas, ou a setores nascentes. * Serviços Sob o guarda-chuva deste tema incluem-se coisas tão diversas como serviços profissionais (consultoria, auditoria, contabilidade, serviços médicos), comerciais (cadeias de alimentação ou lojas, por exemplo), serviços culturais e educacionais (que desta forma seriam tratados como mercadorias), serviços ambientais (água e esgoto), serviços financeiros (bancos, seguros), ou os referentes a telecomunicações, entre outros. Sobre estes últimos (serviços financeiros e telecomunicações) os EUA propõem inclusive capítulos específicos no processo de negociação (esse mesmo mecanismo é proposto nas negociações entre o Mercosul e a União Européia). Não são temas propriamente de comércio entre países. Os EUA aproveitam essa discussão também para forçar cláusulas referentes a defesa de seus investidores, o que deveria ser tratado no tema "investimento". Sobre os temas a entrarem em negociação aqui existe também uma polêmica sobre o processo, se por listas positivas (isto é, só entram os setores que estiverem listados, como é o caso na OMC) ou listas negativas (entram todos os setores menos os que estiverem listados), como é a proposta dos EUA, embora no período mais recente esteja predominando a idéia de Seguir os parâmetros da OMC para o processo Alca. No âmbito do processo negociador Alca, o Mercosul em geral, e o Brasil em particular, relutam em discutir esse tema, e os países menores, como os do bloco do Caribe (Caricom), pretendem que sejam levadas em consideração as diferenças de tamanho entre as economias. * Investimentos As discussões nesse tema dizem respeito a garantias para os investidores dos países participantes do acordo, e a posição dos EUA é tentar garantir um capítulo de investimentos na Alca similar ao do Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte, entre EUA, Canadá e México), que tenta reproduzir as propostas do malogrado AMI (Acordo Multilateral de Investimentos), naufragado nas discussões entre os próprios países desenvolvidos no âmbito da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Esses mecanismos permitem inclusive que empresas processem Estados Nacionais, e que se tenha impedimentos a formulação de leis e regras nacionais que possam diferenciar ou ferir garantias aos investidores internacionais. Os EUA propõem ainda uma definição de investimento que não diferencia o chamado "Investimento Externo Direto" (IED, investimento propriamente dito) de aplicações de carteira (investimento meramente financeiro, e muitas vezes especulativo). O posicionamento brasileiro tem sido no sentido de preservar a capacidade nacional de fazer políticas industriais e de desenvolvimento. No âmbito do processo negociador Alca, representantes brasileiros expressaram pela imprensa pouco interesse na discussão desse tema no momento, e poderiam limitar essa discussão à transparência quanto às restrições existentes em cada institucionalidade nacional, além de que aqui também, como em serviços, haver uma tendência recente para a aceitação de listas positivas. * Compras Governamentais A discussão aqui é sobre a capacidade dos fornecedores não-nacionais em competir em igualdade de condições com os nacionais por compras dos diversos níveis do setor público. Pode ser diferenciada por valores (por exemplo, até um determinado valor seria preservada a capacidade de oferecer apenas aos fornecedores nacionais, e daí para adiante entrariam todos em igualdade na disputa), por níveis administrativos (se a entra na discussão apenas o nível federal, ou também os chamados níveis subnacionais, como Estados e Municípios), se valem também para as empresas do Estado (por exemplo, a Petrobrás ou a Eletrobrás podem optar ou não por fazerem suas compras apenas de fornecedores nacionais) ou para todos os setores (o que envolveria uma pesada discussão quanto as áreas referentes à segurança nacional, por exemplo). De novo, envolve a discussão sobre a possibilidade de fazer políticas de desenvolvimento (inclusive tecnológico) utilizando as compras públicas. Esta discussão também pode ter forte impacto, dependendo de como se desdobrar, sobre a produção local, inclusive a agricultura familiar (fornecimento de merenda escolar por prefeituras, por exemplo). Vários representantes brasileiros no processo de negociação da Alca afirmaram no período recente pela imprensa querer restringir a discussão deste tema à transparência dos processos, se for o caso de discutí-lo. *Subsídios, Anti-dumping e Direitos Compensatórios Esses temas complementam os ligados efetivamente a comércio, como agricultura e acesso a mercados, e tem forte restrição à discussão por parte dos norte-americanos, que não querem colocar os seus apoios internos à produção em discussão (ver os temas Agricultura e Acesso a Mercados). * Propriedade Intelectual Regular o desenvolvimento de tecnologia e patentes é o objetivo deste grupo temático, que de novo não diz respeito propriamente a comércio. Sua inclusão decorre do fato de, nas discussões da Rodada Uruguai que deram origem á OMC, os EUA terem forçado a inclusão de um acerto sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (conhecido pela sigla inglesa TRIPS). No âmbito da OMC, por exemplo, a pressão das posições de países como o Brasil e a África do Sul, somados à mobilização de setores da sociedade civil inclusive dos países desenvolvidos, conseguiu relativizar as regras TRIPS para a produção de medicamentos genéricos, especialmente importante para viabilizar o combate a AIDS e outras doenças de tratamento caro em países menos desenvolvidos. Vários representantes brasileiros no processo de negociação da Alca afirmaram no período recente pela imprensa quererem restringir a discussão deste tema à transparência dos processos, se for o caso de discutí-lo. Além disso, vários países (especialmente aqueles em que a população indígena constitui maioria e/ou percentual importante na sua população, como Bolívia, Venezuela, Perú, Equador) reforçam neste item a idéia da proteção a cultura e conhecimentos tradicionais de suas populações tradicionais. * Política de Concorrência A discussão do tema busca adequar e/ou constituir regras multilaterais que permitam a defesa da concorrência e a regulação de mecanismos que dificultam a concorrência, como trustes e cartéis. Vale ressaltar aqui que países como EUA e Canadá tem não apenas legislações e jurisprudência consolidada sobre o tema há muitas décadas, enquanto que outros como o Brasil têm regras e agências de controle da concorrência bem mais recentes, e alguns países nem têm tradição de discussão sobre o tema. O Mercosul tem em geral defendido a transparência como ponto importante neste item, mas os EUA forçam que sob esse assunto possa ser discutido limitações à existência e ao funcionamento das empresas estatais, por exemplo, alegando que, por exemplo, seu financiamento com recursos orçamentários seria um desincentivo à competição nos setores em que atuam. * Solução de Controvérsias Aqui se deveriam pensar os mecanismos para a solução de diferenças resultantes das interpretações ou de avaliações sobre descumprimentos dos acordos no âmbito da própria Alca. O tema vem sendo discutido, mas está esfriado pelas dúvidas referentes à efetivação dos acordos e aos seus próprios conteúdos. * Outros Temas Aqui se incluem vários outros temas que tem tratamento fora dos grupos negociadores propriamente ditos. Alguns países, como EUA, querem incluir a discussão de regras trabalhistas e ambientais no bojo dos acordos, o que tem encontrado restrições por parte de outros. Participação da sociedade civil uma vez constituída a Alca é outro tema de discussão aqui (existe uma proposta chilena, apoiada por vários países, mais criticada pela maior parte da sociedade civil). Também existe discussão sobre a futura sede, uma vez constituída a Alca (Miami, Cancún, Panamá e Porto Espanha se apresentam como candidatas, esta última com o apoio do bloco de países do Caribe, o chamado Caricom). Impasses de Puebla A reunião do Comitê de Negociações Comerciais (CNC) da Alca, realizada em Puebla, México, em fevereiro deste ano, deveria transformar as orientações políticas emanadas da reunião ministerial de Miami (reconformar o processo de negociação da Alca de forma a permitir que o processo negociador se dê em dois níveis) em orientações práticas para que os diversos grupos temáticos pudessem discutir mais tecnicamente como encaminhar as conclusões do processo negociador em si. Entretanto, a reunião de Puebla terminou em um recesso, depois de configurado um impasse no processo de negociação. A raiz do impasse diz respeito a como adaptar, a partir das definições de Miami, as ambições dos vários países e/ou blocos de países em relação à nova configuração da Alca em dois pisos. O desenho em dois pisos, em que existe um primeiro piso de direitos e obrigações aplicáveis a todos os países, e um segundo piso de compromissos adicionais no formato plurilateral, faz com que os diversos países e/ou blocos queiram trazer para a parte comum de direitos e obrigações ("piso 1") o maior conjunto possível de suas ambições no processo negociador, jogando a maior parte dos assuntos dos quais quer se ver livre de compromissos (ou não pode aceitá-los) para piso referente aos compromissos adicionais. Assim, em relação aos temas tradicionais de comércio, em especial à agricultura, onde prevalecem os interesses do agronegócio, o Mercosul coloca uma enorme ambição no chamado "piso 1", ao mesmo tempo em que se coloca em uma posição predominante defensiva quanto ao estabelecimento de regrais gerais para temas como serviços, investimentos, propriedade intelectual e compras governamentais, por exemplo, que possam ser limitadores ao processo de desenvolvimento nacional (em especial se envolverem direitos amplos aos países mais desenvolvidos). Por outro lado, em defesa de suas corporações empresariais, ou das possibilidades destas, os EUA e o Canadá, assim como outros países com o qual esses dois já possuem acordos mais amplos (e que, visto do ponto de vista do Mercosul, colocaram limites às suas possibilidades de desenvolvimento), colocam enormes ambições negociadoras em temas novos (como serviços, investimentos, propriedade intelectual e compras governamentais, exatamente aqueles nos quais o Mercosul apresenta enormes limites às suas possibilidades de negociação), e rebaixam bastante suas possibilidades negociadoras nas áreas de acesso a mercados e agricultura para o piso comum, seja por restrições de suas legislações nacionais, seja por não quererem impactos em seus processos eleitorais nacionais em curso, seja mesmo para forçar uma atitude negociadora mais flexível por parte do Mercosul e dos países do Caribe. A existência de posições fortes e claras, e pouca flexibilidade negociadora dos vários lados, sobre como orientar os grupos negociadores em seu funcionamento levou a não conclusão da reunião do CNC de Puebla. Configurado o impasse, que inviabilizava a orientação que deveriam emanar para os grupos, os representantes das delegações presentes a Puebla preferiram suspender a reunião por algumas semanas, para retomá-la em meados de Março. O objetivo deste "recesso" é, consultados novamente os respectivos governos, ver quais os efetivos limites das posições expressas em Fevereiro, e se será ou não possível neste momento orientar os grupos negociadores para que estes voltem a funcionar, de modo a tentar concluir o processo negociador ainda este ano. Caso não seja possível chegar a emanar orientações para os grupos, ou no caso das orientações que possam sair do CNC sejam tão genéricas que, de fato, não ofereçam condições de trabalho aos grupos, os prazos acordados, ou mesmo todo o processo negociador, podem ser colocados novamente em discussão, assim como a própria efetivação da Alca. * Rede Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP)
https://www.alainet.org/pt/articulo/109419?language=en

Clasificado en

Subscrever America Latina en Movimiento - RSS