Gente boa
13/02/2004
- Opinión
Se nos ativermos preferentemente aos cenários globais da
macroeconomia, da situação política do mundo e do Brasil
e do estado ecológico da Terra, somos tentados a ficar
deprimidos e até desesperados. Não é fácil para um
cidadão comum que ainda se orienta pela verdade e pela
justiça ter que aturar, dia após dia, a cara do
Presidente Bush, medíocre, arrogante e mentiroso. Ou ver
anos a fio nas televisões e nos jornais a cara de alguns
políticos notoriamente corruptos ou de animadores de
programas de embecilização coletiva que passam aos
espectadores a idéia de que o que conta mesmo não é a
vida mas o espetáculo. E há pessoas capazes de vender a
alma ao diabo por um minuto de celebridade. Quantos
diante disso não chegam a pensar: o mundo não tem jeito
mesmo, ele é dos espertos e arrivistas. E passam a vida
amargurados.
Só nos curamos deste mal-estar se nos voltamos para o
microcenário da vida cotidiana na qual vivem os cidadãos
comuns. A esses não lhe diz nada o risco Brasil, nem a
bolsa nem a cotação do dolar, porque não mexem com tais
coisas. Vivem de salários pagos em reais a preço de duro
trabalho. Nesse universo das grandes maiorias encontramos
uma preciosidade, aquilo que na linguagem comum chamamos
de gente boa. Essa gente boa nos devolve a confiança de
viver.
Quem é gente boa? Não é fácil defini-la mas a encontramos
a todo momento à nossa volta. É gente honesta, direita e
trabalhadora, gente que leva bem sua família, que está
sempre disposta a ajudar os outros e que mostra honradez
no cotidiano. Logo os reconhecemos: é acolhedora, possui
um olhar risonho e é como se tivesse a bondade escrita na
testa. É gente em quem podemos confiar. Encontram-se não
apenas entre os simples mas tambem nos estratos mais
sofisticados que mantiveram, contudo, sua humanidade
essencial imune aos simulacros da sociedade da
representação. Por isso, a gente boa é antes um estado de
alma que uma classe social, uma qualidade do coração, que
vai além do plano econômico, social e intelectual. É
aquele que no trabalho salta no lugar do outro que
faltou, porque as coisas têm que ser assim e devem
funcionar, independente do sacrifício que comporta. Ou a
cozinheira que fica além do horário, sem amarrar a cara,
porque houve uma festa de família que se alongou. É o
negociante, comprometido com a comunidade, que não se
incomoda em perder algum dinheiro, para estar presente em
alguma atividade importante. Gente boa não precisa ser
religiosa, mas é sempre respeitadora, e quando é
religiosa, não faz alarde e reza discretamente suas
orações e se confia de manhã e de noite ao bom Deus.
Gente boa é a gente humilde da canção iniqualável de
Chico Buarque, aqueles que vão em frente sozinhos sem ter
ninguém com quem contar e são honestos e trabalhadores.
Eu diria que o valor de um povo se mede pela quantidade
de gente boa que é capaz de produzir. O Brasil funciona
por causa desta gente boa, a despeito dos corruptos e dos
políticos que em geral mentem sobre a real situação do
pais. Norberto Bobbio nos deixou esta sábia lição: o
valor de uma sociedade não se mede pela boa ordenação
jurídica mas pelas virtudes que os cidadãos vivem. A
gente boa vive de virtudes, por isso, ela não nos deixa
desesperar e nos dá boas razões para continuar
confiando. Ela é, graças a Deus, a grande maioria do
pais.
* Leonardo Boff. Teólogo.
https://www.alainet.org/pt/articulo/109407
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