O visitador
29/01/2004
- Opinión
Morava numa das ladeiras do bairro de Lourdes, próximo à igreja, uma
das mais belas de Belo Horizonte. De sua vida pessoal, nada se sabe.
Talvez fosse o último rebento de uma estirpe familiar. Vivia só numa
daquelas casas em que a porta da sala dava diretamente na calçada.
Sem luxos; apenas dois cômodos e a saleta apertada. Porém,
Boaventura só saía à rua vestido com esmero. O terno escuro sem uma
dobra, a gravata de seda em nó de mestre, os sapatos espelhados de
tanto lustro. Abraçara estranho ofício: visitar familiares de
pessoas falecidas.
Nem a todos agrada o triste dever das visitas de pêsames. O que
dizer a um pai inconsolável com a perda do filho? Ou à esposa jovem
privada repentinamente da companhia do marido? Culpar Deus, a
incompetência da medicina, a própria vida por culminar na morte? As
frases de ocasião soam rarefeitas e inadequadas, as lágrimas causam
constrangimento, por menos que se fique o tempo parece demorado.
Boaventura, no entanto, descobrira, antes que a barba despontasse em
seu rosto esquálido, adorar visitas de condolências. Ainda que não
tivesse nenhuma relação com a família do defunto, abastecia-se do
obituário dos jornais ou dos proclamas fúnebres pregados nos postes
das esquinas, para se dispor a uma palavra de conforto. Supunha-se
tratar-se de um daqueles amigos que só o falecido poderia
identificar. Ninguém duvidava de que Boaventura privara da afeição
do enterrado, mormente após escutar suas reverenciais palavras de
lamento por tão irremediável perda.
Tamanho o efeito de sua exequial diplomacia que, logo, amigos
incumbiram-lhe de cumprir, no lugar deles, as visitas de
condolências. Tão bom efeito causavam que, não tardou, as
solicitações cresceram, o que obrigou Boaventura, para dispor de
tempo, a cobrar módicas quantias pelo encargo.
Bastava-lhe o endereço da casa enlutada e uma breve descrição do
falecido. Apresentava-se à família como amigo do amigo, manifestando
as excusas do ausente por motivo de força maior, mas que, no
entanto, lhe solicitara o respeitoso obséquio.
Palrador, porém com senso comedido do ritmo das frases, e em tom
confessional, Boaventura não se afligia ainda que os familiares
desabassem em choro. Evocava as virtudes do falecido, segundo lhe
dissera o remetente, e o fazia com tanta arte, enfático nas
inigualáveis qualidades, que a família surpreendia-se ao descobrir,
graças àquele estranho tão polido, talentos e virtudes que ela
própria jamais percebera no ente desaparecido.
Se a viúva ou a mãe soluçava inconformada, Boaventura sacava da
memória meia dúzia de citações bíblicas e, piedosamente, desfiava as
glórias da vida celestial. Com voz pausada, suas palavras aquietavam
corações, aliviavam culpas, confortavam dores. Era tido por muitos
como o anjo enviado por Deus para livrar os olhos do véu que nos
impede mirar quão melhor é a vida eterna.
A fama de Boaventura disseminou-se pela cidade. Políticos passaram a
contratá-lo para prestar votos de condolências. Nos enterros, da
boca dele brotava, em nome do deputado fulano, cujos sentimentos
lutosos o impediam de se manifestar a viva voz, um tocante discurso
fúnebre. Sua retórica pincelava o mais admirável retrato do defunto.
Muitos em Belo Horizonte estavam cientes de que, desse empenho
necrófilo, Boaventura extraía o sustento. Mas fingiam não sabê-lo
mercador de condolências. Talvez porque, frente a uma perda, melhor
remédio é uma palavra confortadora que o silêncio da indiferença.
No dia em Boaventura faleceu, o cemitério do Bonfim pareceu exíguo
para tanta gente. Lágrimas correram em gratidão póstuma aos bons
serviços prestados pelo homem que tratava a morte com reverência e
sabia aplacar os sofrimentos de quem sobrevive ao afeto perdido.
Boaventura tinha o dom dos pêsames, talento que ninguém demonstrou
ali no cemitério. O silêncio diante do caixão pousando no fundo da
sepultura ecoou como gritante alerta de quão importante era o ofício
do falecido. Foi a melhor homenagem.
A morte cala, inexoravelmente. Para quem fica, há que dizer uma
palavra. difícil é encontrar a adequada. Esse era o mérito desse meu
tipo inesquecível.
* Frei Betto é escritor, autor de "Gosto de Uva" (Garamond), entre
outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/109317
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