Um FSM que vai bem além do folclore
20/01/2004
- Opinión
Concebida para "asiatizar" o Fórum Social Mundial (FSM), e assim
universalizar o processo iniciado em Porto Alegre, a reunião de
Mumbai já atingiu seus primeiros objetivos. Com suas complexidades,
suas riquezas, contradições e simbolismo, a Índia conquistou seu
lugar e a Ásia terá a partir de agora em Mumbai um ponto de
referência geográfico e alteromundista.
As 13 línguas oficiais do FSM — hinti, marata, tamil, bengali,
malaio, coreano, bahasa, indonésio, tai, japonês... inglês, francês
e espanhol — já são um testemunho evidente.
Cor e dança, o primado da identidade
A abertura do Fórum, na tarde do dia 16, serviu de termômetro e
abalou os céticos. E, entre esses, algumas organizações locais de
camponeses indianos, desacreditados da validade do Fórum, algumas
delas reunidas no fórum paralelo "Mumbai Resistência 2004",
minoritário, localizado diante do evento "oficial".
Desde o início do FSM, uma maré humana transbordou das vastas
instalações do Nesco Ground, antiga fábrica abandonada reconvertida
em "capital da solidariedade sem fronteiras", segundo seu
idealizador, o jovem arquiteto militante K. P. Das.
Desde então até agora — e certamente assim vai ser até o
encerramento, quarta-feira — tudo parece pequeno em um ambiente que
equivale a vários estádios de futebol adjacentes, em forma de bairro
popular. A maré humana vai e vem sem cessar, percorrendo as ruas ao
ritmo dos cantos e danças representando as regiões mais diversas do
continente, do folclore paquistanês aos monges tibetanos, passando
por grupos tribais com seus arcos e flechas... Toros hasteando
cartazes ou insígnias do FSM.
Assim, o número de participantes ultrapassa largamente os 100 mil
inicialmente previstos. E parece bem superior — o dobro ou o triplo
— devido a uma incessante e repetida circulação.
Por trás do ritmo, do barulho constante e das cores rutilantes, todo
este movimento humano de feições asiáticas ultrapassa o simples
folclore ou o show de mídia. É a irrupção de uma outra maneira de
compreender o FSM que se formaliza em Mumbai: ela privilegia o
encontro com os outros a partir de uma forte identidade cultural
própria.
Ela não aceita ser midiatizada por quem quer que seja. Reconhece a
diversidade extrema dos povos e línguas - só na Índia (com 1,1
bilhão de habitantes) fala-se 15 idiomas oficiais e mais de mil
dialetos autóctones.
A identidade cultural exige um exercício etnológico para compreender
a política. Ela afirma que um outro mundo será possível... a partir
da diversidade. Estima que a globalização uniformizante se combate
com um alteromundismo construído a partir da realidade local, de
baixo para cima, do particular para o consenso, do vivido
cotidianamente para a alternativa macro.
Novas caras na multidão
A presença massiva das mulheres neste 4º Fórum Social Mundial é
visível: elas são vistas circulando nas ruas do Fórum, trabalhando
como voluntárias na organização, ocupando-se das traduções. E
igualam os homens entre a centena de moderadores e oradores famosos
que animam as principais conferências, assim como as sessões de
abertura e encerramento.
Também é significativo o evidente caráter popular das milhares de
pessoas que marcaram encontro na capital econômica e financeira do
país. Se as organizações nacionais dos "Daits" (os intocáveis, sem
casta) devem ter vindo com 30 mil delegados(as), o resto, maioria, é
hegemonizado pelos representantes de povos tribais ou das camadas
mais baixas na escala social da Índia e dos países vizinhos.
Proporcionalmente, os "brancos" são poucos, os mestiços latino-
americanos ainda mais raros e os africanos os eternos ausentes.
Também surpreende a quantidade de grupos, de organizações e
movimentos, os mais variados: políticos, tribais, de baixa casta ou
sem casta, por setor, por religião, homossexuais e lésbicas,
crianças, defesa de todo tipo de minorias, etc.
Este leque sócio-cultural-generacional e setorial se revela tão
impressionante como a multidão que transborda do Nesco Ground. Sua
composição vai bem além do grupo de oito organizações brasileiras
que convocaram originalmente o primeiro Fórum Social Mundial, em
2000. Ela ultrapassa amplamente a representatividade formal um pouco
formal do Conselho Internacional do FSM; e obrigará a pensar o
futuro deste evento a partir de novos dados e parâmetros
participativos, que conheceram, nesta sessão de Mumbai, uma
verdadeira explosão multiplicadora.
Um desafio já visível no futuro
Se o objetivo era massificar e asiatizar o processo nascido em Porto
Alegre, nada melhor que esta aterrissagem do FSM na Índia. aqui por
diante, será fundamental propor novas metodologias na forma,
existência e funcionamento do Fórum para poder digerir o material
fornecido pela "explosão de Mumbai".
Os desafios imediatos já começam a aparecer. De sua correta solução
dependerá a própria viabilidade do salto qualitativo vivido.
Primeiro: a questão nada nova de como converter a quantidade em
qualidade, a multidão em síntese, participação massiva em conclusões
sintetizáveis e socializáveis. Até agora ninguém parece ter uma
resposta acabada.
Segundo: como garantir, no próximo Fórum Social Mundial — que
ocorrerá em 2005 em Porto Alegre — a participação assim massiva e
marcante dos setores sociais mais marginalizados e mais explorados,
no melhor estilo do que se vive em Mumbai?
Terceiro: como obter no futuro que, a partir da presença maciça de
autóctones, por enquanto quase tribal e local, se possa sistematizar
novas propostas alternativas que tornem um outro mundo realmente
possível? Permitindo que as novas faces dos protagonistas deste
encontro alteromundista continuem a ser em número crescente.
À margem dos desafios futuros, é inegável que o processo nascido em
Porto Alegre, depois de apenas três anos de existência, já se
perfilou como um espaço alternativo de referência mundial impossível
de se negar ou menosprezar. Ele só poderia se debilitar por
dissidências internas — e este risco foi corrido pela primeira vez
na Índia — ou pela cooptação ideológica. Agora, o FSM vive, se
engrandece e rompe todos os esquemas das forças políticas
tradicionais, ao reforçar, a cada ano, em cada encontro, uma nova
forma de cultura política universal.
https://www.alainet.org/pt/articulo/109210
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