Entre a cruz e o pão
15/01/2003
- Opinión
A cruz é o símbolo católico do Cristianismo. Segundo
os publicitários, a mais simples e genial logomarca
já criada: dois pedaços de pau cruzados ou apenas dois
riscos perpendiculares riscados na parede, ou ainda, dois
dedos colados, um na vertical, outro na horizontal
Pena que a confissão religiosa que celebra a vida
como dom maior de Deus adote como símbolo um
instrumento de morte. Cruzes são adequadas nos
cemitérios, sobre tumbas. Não é o caso de Jesus, que
deixou vazio o seu túmulo de pedra. A sua morte não é o
fato central da fé cristã. É a sua ressurreição. Como diz
Paulo, não houvesse Jesus ressuscitado, a nossa fé seria
vã (I Coríntios 15, 14)
Como simbolizar a ressurreição? Até hoje não conheço
quem tenha se mostrado suficientemente criativo para
consegui-lo. Há pinturas e imagens em que Jesus aparece
revestido de um corpo glorioso, mas elas parecem evocar
um homem saindo do banhoŠ Na Igreja primitiva, era o
peixe o símbolo secreto de fé cristã, em referência ao
batismo pela água. Assim como os peixes vivem nas
profundezas do mar e dos lagos, os cristãos renasciam,
pela água batismal, mergulhados nas catacumbas, onde
foram encontradas várias pinturas de peixes. Para santo
Agostinho, Cristo é o peixe vivo no abismo da
mortalidade, como em águas profundas (De Civitate Dei
XVIII, 23). Além disso, peixe, em grego - ichthys - era
considerado acróstico de Iesous Christos Theou (H)yios
Soter (Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador)
Foi a perseguição romana que induziu as comunidades a
adotarem a cruz, instrumento de suplício e morte do
Império. Nele, Jesus foi sacrificado. A mais antiga cruz
que se conhece data do século IV e está gravada no portal
da igreja de Santa Sabina, em Roma, no monte Aventino,
anexa ao convento que abriga o governo geral da Ordem
Dominicana
Cessada a perseguição à Igreja, a cruz passou da
clandestinidade para a centralidade nas torres das
igrejas e capelas. E, aos poucos, sombreou o
Cristianismo. A ponto de a Via Sacra, antes da reforma
litúrgica promovida pela Concílio Vaticano II, contar com
apenas catorze estações
Encerrava-se com a morte no Calvário. Hoje, são quinze. A
ressurreição de Jesus é o ponto culminante dessa forma de
devocão cristã
A predominância da cruz incutiu no catolicismo uma
espiritualidade lúgubre, Padres e beatas vestiam-se de
preto. O riso, a alegria, as cores, pareciam banidos da
liturgia. Enfatizava-se mais a morte de Jesus pela
redenção de nossos pecados e, de quebra, as penas do
inferno, que a sua ressurreição como vitória da vida, de
Deus, sobre as forças da morte. Mais a dor que o amor
Como simbolizar a ressurreição? Através de algo que
expresse a vida. E não conheço melhor símbolo que o pão.
Alimento universal, é encontrado em quase todos os povos
ao longo da história, seja feito de trigo, milho,
mandioca, centeio, cevada ou qualquer outro grão ou
tubérculo. E possui uma propriedade especial: come-se
todos os dias, sem enjoar
"Eu sou o pão da vida", definiu-se Jesus (João 6,
48). Porque o pão representa todos os demais alimentos. E
a vida, como fenômeno biológico, subsiste graças à comida
e à bebida. São os únicos bens materiais que não podem
faltar ao ser humano. Caso contrário, ele morre. No
entanto, é vergonhoso constatar que, hoje, segundo a FAO,
842 milhões de pessoas vivem, no mundo, em estado de
desnutrição crônica. Isso em países ditos cristãos,
muçulmanos, budistasŠ Para que serve uma religião cujos
fiéis não se sensibilizam com a fome alheia? Por que
tanta indiferença diante dos povos famintos? O que
significa adorar a Deus se ficamos de costas ao próximo
que padece fome? (I João 3, 17)
Jesus fez da partilha do pão e do vinho, da comida e
da bebida, o sacramento central da comunidade de seus
discípulos - a eucaristia
Ensinou que repartir o pão é partilhar Deus. Na Palestina
do século I havia miseráveis e famintos (Mateus 25, 34-
45; Lucas 6, 21). Muitos empobreciam em decorrência da
perda de suas terras, do peso das dívidas, dos tributos
exigidos pelo poder romano, dos dízimos cobrados pelas
autoridades religiosas. Diante disso, Jesus assumiu a
causa dos pobres e promoveu um movimento indutor da
partilha dos bens essenciais à vida (Marcos 6, 30-44),
onde o fio condutor é o alimento e, em especial, o pão
Desde o início de sua militância, a partilha do pão
foi a marca de Jesus (Lucas 1, 53; 6, 21). A
comensalidade era a expressão vivencial mais
característica de sua espiritualidade, para a qual havia
uma íntima relação entre o Pai (o amor de Deus e a Deus)
e o pão (o amor ao próximo)
Pai Nosso e pão nosso. Deus só pode ser aclamado como
"Pai Nosso", na medida em que o pão não for só meu ou
teu, mas nosso, de todos. É o que explica a ausência de
preconceitos por parte de Jesus quando se tratava de
sentar-se à mesa com pecadores e publicanos, ainda que
isso lhe valesse a fama de "comilão e beberrão" (Lucas 7,
34; 15, 2; Mateus 11, 19)
Partilhar o pão era um gesto tão característico de
Jesus que isso permitiu que os discípulos de Emaús o
identificassem (Lucas 24, 30-31). E a ceia tornou-se o
sacramento por excelência da presença e da memória de
Jesus (Marcos 14, 22-24; 1 Coríntios 11, 23-25)
O pão - eis o símbolo (= aquilo que une) mais
expressivo da prática de Jesus, a ponto de
transubstanciá-lo em seu corpo. E todo pão que se oferece
a um faminto tem caráter sacramental (Mateus 25, 34). É
ao próprio Jesus que se oferece. Às vésperas de sua
morte, Jesus antecipou-nos a sua ressurreição ao dividir
com seus discípulos, na ceia, o pão e o vinho. Ele se deu
a nós. No gesto de justiça, ao partilhar o pão
(significando todos os bens da vida) nós nos damos a ele.
Eis o sentido evangélico da comunhão. É o que retratam a
parábola do filho pródigo, na qual o perdão é celebrado
em torno da comida, o "novilho gordo" (Lucas 15, 1132); e
os episódios do bom samaritano - o cuidado (Lucas 10, 29-
37); da mulher cananéia - a cura (Mateus 15, 21-28); do
óbulo da viúva - o desapego (Marcos 12, 41-44), da
chicotada no Templo - a indignação frente à injustiça
(João 2, 13-22)
Pão - bem essencial à vida, dom maior de Deus, que se
fez carne e se fez pão, a ponto de Jesus afirmar "o
pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo"
(João 6, 51). Se já não temos, entre nós, a presença
visível de Jesus, ao menos adotemos, como sinal de sua
presença, isto que ele mesmo escolheu na última ceia - o
pão. Sinal de que somos também seus discípulos,
empenhados em tornar realidade, para todos, "o pão nosso
de cada dia", os bens que imprimem saúde, dignidade e
felicidade à nossa existência.
* Frei Betto é escritor, autor da biografia de Jesus
"Entre todos os homens" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/109174
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