Sustança

08/01/2003
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Anos atrás, acompanhei um grupo de sindicalistas à Bélgica. Nossa agenda incluía uma série de palestras para estreitar vínculos entre a CUT e as centrais belgas. Por medida de economia (como são econômicos os europeus, que raspam o prato com miolo de pão!), ficamos hospedados em casas de dirigentes sindicais. Estranharam nosso indefectível costume do banho diário, herança indígena. Perguntaram se estávamos doentes. Numa das casas, a família se viu constrangida a retirar da banheira a coleção de vasos e plantas. Certa tarde, fomos a Antuérpia, cidade dos mercadores de jóias e diamantes. Frente a uma programação amena, que deixava espaço para tempo livre, os brasileiros decidiram ir às compras. A guia e intérprete, uma belga que morara anos em São Paulo, espantou-se. Fazer compras? Não são sindicalistas de esquerda? Vão se entregar ao consumismo capitalista? Prontifiquei-me a acompanhá-los, caso ela resistisse a servir-lhes de tradutora. Ela cedeu. Na volta, parecia mais indignada ainda. Quase arrancando os cabelos, queixou-se de que eles haviam torrado dinheiro na compra de utensílios domésticos encontráveis em qualquer loja do Brasil. Um deles tinha adquirido uma colher de pegar macarrão, idêntica à que se encontra em todo supermercado daqui. Fiz ver a ela que, malgrado seus anos de Brasil, pouco entendia de povo. O fato de a mercadoria ser similar à que oferece o mercado nacional era o menos importante. O relevante era o sindicalista, que no Brasil não costuma ir às compras, poder gabar-se, diante de familiares e amigos, que aquele garfo de massas era um produto estrangeiro que ele mesmo compraraŠ Na volta para Bruxelas, a comitiva queixou-se comigo. Precisava comer. Queria sustança. Já não suportava mais tanta "mistura" (batata, salsicha, legumes etc.) sem arroz e feijão ou, pelo menos, massas. Avisei à guia que, após a reunião noturna em Bruxelas, sairíamos todos para comer. Irada, ela prometeu que, antes da mesa-redonda, haveria jantar no sindicato. Transmiti o recado. A expectativa aguçou apetites. Qual não foi a nossa decepção ao chegar à mesa: pães belgas, franceses e italianos, branco, preto, de trigo, centeio e cevada, acompanhados de presuntos, mortadelas, queijos, picles e pastas. Um farto lanche. Os sindicalistas foram para a mesa-redonda com o apetite psicológico aguçadíssimo. Isso mesmo: psicológico. Aquele apetite que todos nós sentimos quando, empanturrados por uma feijoada, nos deparamos com uma sortida mesa de sobremesas. E ainda encontramos um lugarzinho na barriga para o pudim de leiteŠ No fim do debate, convidei a guia para acompanhar-nos no jantar. Jantar?!, reagiu ela. Sim, sustança. Ela se recusou. Não entendia mesmo de gente simples que, minutos depois, sentada à mesa de um restaurante grego, fartava-se com o prato repleto de arroz coberto por grandes favas de feijão branco temperadas com carne de cordeiro. Fato idêntico ocorreu em Puebla, durante a conferência episcopal latino-americana, em 1979. Dom Tomás Balduíno, bispo de Goiás, incluiu na comitiva de leigos brasileiros um camponês. O pobre do Zé, após dias de tortilhas e "tacos", veio me dizer que precisava comer. Tinha a sensação de só lanchar, devido às quantidades reduzidas de arroz e feijão, adequadas a servir de recheio para os "charutos" de milho. Convoquei os jornalistas brasileiros e pedi aos onze sentados à mesa para despejar no prato do Zé suas porções de arroz e feijão. Foi uma festa para o agricultor goiano. Hoje, quando penso naquela guia, tão prestativa, e no apetite dos sindicalistas e do Zé, comparo-os a certos políticos e políticas. Sabem tudo, até administrar a economia do país, exceto responder às expectativas do povo. * Frei Betto é escritor, autor de "Comer como um frade - divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca" (José Olympio), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/109059
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