Fazer renascer o natal
01/01/2001
- Opinión
Neste Natal, não quero essa pavorosa troca de produtos
entre mãos que não se abrem em solidariedade, compaixão e
carinho despudorado. Quero o Menino solto no mais íntimo
de mim mesmo, semeando ternura em todos os canteiros em
que as pedras sufocam as flores.
Neste Natal, não me interessam as oscilações dos índices
financeiros, as promessas viciadas dos políticos, os
cartões impressos a granel, cheios de colorido e vazios
de originalidade. Quero as evocações mais ternas: o
cheiro do café coado de manhã por minha avó, o som do
sino da matriz, o rádio Philco exalando sabonete Eucalol
enquanto a babá me via brincar no quintal.
Não quero as amarguras familiares que se guardam como
poeira nas dobras da alma, as invejas que me alienam de
mim mesmo, as ambições que me tornam tristes como as
galinhas, que têm asas e não voam. Quero os joelhos
dobrados no átrio da igreja, a cabeça curvada ao
Transcendente, a perplexidade de José diante da gravidez
inusitada de Maria.
Neste Natal, não viajarei para longe de mim mesmo, à
procura de uma terra na qual eu próprio me sinta
estrangeiro, falando um idioma cujo significado me
escapa. Mergulharei no mais profundo de minha
subjetividade, lá onde as palavras se calam e a voz de
Deus se faz ouvir como apelo e desafio.
Neste Natal, não entupirei o meu verão de castanhas e
nozes, panetones e carnes gordas. Nem deixarei o que me
resta de sensatez resvalar pelo gargalo de uma bebida
destilada. Porei sobre a mesa Deus fatiado em pão, a
entornar de vinho cálices alados, e convidarei à festa os
famintos de bem-aventuranças.
É insuportável a fissura desencadeada pelas festas de fim
de ano. O consumo compulsório de produtos, o apetite
compulsivo de comilanças, a máscara da alegria estampada
no rosto para encobrir o bolso furado, a corrida aos
espaços de lazer, as estradas engarrafadas, as filas
intermináveis nos supermercados, os sinos de papel
envoltos nas fitas vermelhas dos shopping centers, aquela
mesma musiquinha marota, tudo satura o espírito.
Seria esse anticlima um castigo divino à nossa reverência
pagã à figura de Papai Noel?
Natal é pouco verso e muito reverso. Em pleno trópico,
nosso mimetismo enfeita de neve de algodão a árvore de
luzinhas intermitentes. O estômago devora castanhas,
nozes, avelãs e amêndoas, quando a saúde pede saladas e
legumes.
Já que o espírito arde de sede daquela Água Viva do
poço de Jacó (João 4), afoga-se o corpo em álcool e
gorduras. A gula de Deus busca, em vão, saciar-se no ato
de empanturrar-se à mesa.
Talvez seja no Natal que nossas carências ficam mais
expostas. Damos presentes sem nos dar, recebemos sem
acolher, brindamos sem perdoar, abraçamos sem afeto,
damos à mercadoria um valor que nem sempre reconhecemos
nas pessoas. No íntimo, estamos inclinados à simplicidade
da manjedoura. O mal-estar decorre do fato de nos
sentirmos mais próximos dos salões de Herodes.
Mudemos nós e o Natal. Abaixo Papai Noel, viva o Menino
Jesus! Em vez de presentes, presença - junto à família,
aos que sofrem, aos enfermos, aos soropositivos, aos
presos, às famílias das vítimas de crimes, às crianças de
rua, aos dependentes de droga, aos (d)eficientes físicos
e mentais, aos excluídos.
Façamos da ceia cesta a quem padece fome e do abraço,
laço de solidariedade a quem clama por justiça.
Instalemos o presépio no próprio coração e deixemos
germinar Aquele que se fez pão e vinho para que todos
tenham vida com fartura e alegria. Abandonemos a um canto
a árvore morta coberta de lantejoulas e plantemos no
fundo da alma uma oração que sacie nossa fome de
transcendência. Deixemo-nos, como Maria, engravidar pelo
Espírito de Deus. Então, algo de misteriosamente novo
haverá de nascer em nossas vidas.
*Frei Betto é autor de Gosto de Uva (lançamento da
Garamond para este Natal), entre outros livros
https://www.alainet.org/pt/articulo/108971
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