A linguagem do amor
12/12/2003
- Opinión
A festa de são João da Cruz (1542-1591) é comemorada
no próximo dia 14. Considerado patrono dos poetas
espanhóis, em suas quatro obras ele comprova que a
linguagem do amor extrapola a razão, supera a sintaxe
usual, subverte a lógica e tem como pátria a poesia.
Discípulo e parceiro de Teresa de Ávila, ele viveu a
experiência de Deus com e como intensa paixão.
Aliás, a mística não é outra coisa senão a paixão
humana elevada à esfera sobrenatural. O que ocorre entre
dois amantes, dá-se igualmente entre a criatura e o
Criador, com a diferença de que tanto mais um se apossa
do outro quanto mais se entrega sem querer possuir.
Entre dois amantes, o sentir predomina sobre o
pensar, a efusão sobre a reflexão, o balbuciar sobre
o explicar. Os amantes transitam nos extremos da
linguagem, sem se deter no espaço intermediário.
Pronunciam expressões aparentemente desconexas, próprias
da comunicação infantil, na qual os vocábulos parecem
emergir diretamente dos sentimentos. No pólo oposto,
dispensam palavras e abraçam o silêncio fecundo,
manifestando-se por toque, gesto, olhar, movimento
orgiástico do corpo ou, simplesmente, repouso de um junto
ao outro.
Tudo isso é oração, ensina-nos o autor de "Chama viva
de amor". É transcender-se na direção do outro e penetrar
o mistério, malgrado sua profundidade indevassável. A
maravilha é que o outro é sempre alguém além e fora de
mim, tem vida própria irredutível. É dessa alteridade que
se instaura o respeito e a admiração. Ao pretender
reduzir o outro a meus caprichos, quebro a ad-miração
(mirar ou olhar à reverente distância) e introduzo uma
forma de relação parecida à do senhor e escravo.
Na experiência mística, que é, como demonstra João da
Cruz, uma relação amorosa, arrebatadora, as palavras
empobrecem. Marcada pela inefabilidade, a linguagem busca
recursos em metáforas, alegorias, apotegmas. Banha-se no
vasto oceano dos símbolos. Torna-se sacramental,
mediadora entre o imanente e o transcendente, o natural e
o sobrenatural, o tempo e a eternidade.
João da Cruz, como a maioria dos místicos, expressa
sua relação amorosa com Deus (com licença da
tautologia) recorrendo ao vocabulário dos peregrinos
(viagem, caminho, escalada, subida, saída, êxodo,
exílio), da geografia (monte, montanha, poço, mar,
deserto), da arquitetura (cela, prisão, claustro,
labirinto, porta, umbral, túnel, jardim), dos fenômenos
naturais (raio, trovão, tempestade, fogo, procela, vento,
sol, luz), dos esquemas espaciais (alto/baixo,
dentro/fora, entrar/sair, ascender/descer,
levantar/repousar) e da relação amorosa (toque, beijo,
êxtase, delícia, fruição).
O místico utiliza expressões simbólicas para traduzir
experiências espirituais que não cabem no discurso
racional, doutrinário. A doutrina fala à razão; a
teologia, à fé; a mística, ao amor, dilatando coração e
fé, abertos à presença inefável do Invisível e do
Indizível. O esforço místico de comunicar o
incomunicável, como se um casal quisesse descrever sua
intensidade amorosa, engendra uma linguagem arquetípica,
pois expressa seu significado a qualquer pessoa de
qualquer tempo ou lugar.
Os símbolos deitam raizes na dialética claro/escuro,
doce/amargo, seco/úmido, quente/frio, suave/pesado,
estreito/largoŠ Porém, as sensações positivas predominam
sobre as negativas (gozo, serenidade, fartura,
plenitudeŠ). Como se os nossos cinco sentidos, virados
pelo avesso, reagissem, não à flor da pele, mas à flor do
espírito, deleitados de aromas e sabores, desfrutando
sensações que beiram o Tudo porque ousam buscar o Nada,
como o despojamento radical descrito por Gilberto Gil na
letra de "Se eu quiser falar com Deus".
Os símbolos de João da Cruz propõem algo e indicam um
caminho - o vale de açucenas, o quarto nupcial. Mas nem
tudo ali é fruição. Predominam o esforço, a interrogação,
o mistério, que exigem privação, ascética, espera,
travessia, enfim, a noite que, mergulhada em trevas,
aproxima os amantes sem que um veja o outro, mas um
guarda em si a certeza de que o outro é presente, e tão
presente que, ao se deixar possuir ou habitar, o místico
já não distingue duas identidades e, por isso, canta
encantado: "Ó noite que juntaste / amado com amada /
amada já no amado transformada."
* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo
Boff, de "Mística e espiritualidade" (Rocco), entre
outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/108966
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