A ALCA e a raposa de La Fontaine

20/11/2003
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As notícias que chegam de Miami estão indicando que os EUA e os demais países aceitarão, por enquanto, a preferência brasileira por uma Alca "desidratada", isto é, um projeto de acordo mais flexível e menos abrangente do que o originalmente previsto. Apesar das resistências de diversos participantes, parece que irá prevalecer o entendimento a que chegaram os EUA e o Brasil em encontros preparatórios. Segundo esse entendimento, a Alca incluiria um conjunto mínimo de benefícios e obrigações. Os países que desejassem poderiam negociar compromissos adicionais em bases bilaterais ou plurilaterais. Ninguém seria forçado, contudo, a assumir obrigações em temas problemáticos como, por exemplo, antidumping, investimentos, propriedade intelectual e compras governamentais. Ponto para a diplomacia brasileira? Em certo sentido, sim. O que está sendo acordado em Miami fica, aparentemente, bastante próximo da proposta levada pelo Mercosul à reunião de Trinidad e Tobago, comentada nesta coluna há cerca de um mês ("Quinta- coluna, quinta categoria", 16 de outubro de 2003). Recorde-se que a proposta apresentada em Trinidad e Tobago é aquela proposta "irrealista" e "ideológica", que teria levado o Brasil a um profundo "isolamento". Valeria a pena, diga-se de passagem, recuperar o que foi escrito a esse respeito em outubro na imprensa brasileira... Por outro lado, não há dúvida de que qualquer comemoração seria muito prematura. O recuo dos EUA é meramente tático e temporário. A sua motivação é óbvia. O governo americano quer evitar um fracasso "à la" Cancún, que aconteceria, dessa vez, em seu território, na Flórida, governada pelo irmão do presidente Bush, e em Miami, que pretende ser a sede da Alca. Os EUA não disfarçam o seu descontentamento com o formato "desidratado". A agenda definida em Miami será, tudo indica, deliberadamente vaga e genérica. Ao mesmo tempo, o ministro do Comércio Exterior, Robert Zoellick, e o negociador-chefe dos EUA na Alca, Ross Wilson, continuam reiterando o compromisso dos EUA com uma Alca "abrangente", conforme a concepção original. Em paralelo, anunciam a disposição de negociar ou continuar negociando, dentro do modelo abrangente, acordos de livre comércio com alguns países ou grupos de países latino- americanos. Outros governos criticaram bastante o novo formato que surgiu do entendimento EUA-Brasil. Canadá, Chile e México, por exemplo. Não por acaso, são países que já têm acordos de livre comércio com os EUA no formato abrangente, tendo feito grandes concessões em questões como serviços, patentes, licitações públicas, investimentos e arbitragem internacional para disputas entre Estados e empresas privadas. Insistem em que o Brasil, a Argentina e os demais participantes da Alca devem assumir compromissos do mesmo tipo, considerados indispensáveis nos acordos comerciais "de última geração". Estão um pouco na posição daquela raposa da fábula de La Fontaine, que, tendo perdido a cauda numa armadilha, tentou convencer as outras de que cortar a cauda era a última moda. O que canadenses, chilenos e mexicanos estão dizendo é que brasileiros e argentinos não podem obter as mesmas vantagens (em termos de acesso ao mercado dos EUA, por exemplo) se não estão dispostos a assumir as pesadas obrigações incluídas no Nafta e no acordo bilateral EUA-Chile em matéria de serviços, investimentos, propriedade intelectual e compras governamentais. Em tudo isso, há muito jogo de cena, evidentemente. Quem deu esse mote foi o próprio governo dos EUA. Antes mesmo da reunião de Miami, Zoellick e outras autoridades americanas afirmaram ou insinuaram que, na Alca flexível, as vantagens seriam proporcionais às obrigações. Em outras palavras, os países que não aderissem a certos capítulos do acordo seriam punidos em termos de acesso a mercados. O Brasil rejeitou imediatamente essa interpretação, e a questão ficou no ar. Será certamente recolocada. Ou diretamente pelos EUA ou indiretamente, com mão de gato, por intermédio de países que servem de massa de manobra de Washington na negociação da Alca. A posição do Brasil foi bem explicada pelo nosso negociador- chefe, embaixador Macedo Soares. O governo aceita o princípio de que deve haver correspondência entre benefícios e obrigações. Mas entende que essa correspondência deve ser negociada dentro de cada categoria do acordo, e não de forma cruzada entre acesso a mercado e normas em outras áreas. Além disso, como observou um dos principais jornais americanos, em editorial, o princípio de que devem ser punidos países que não assumem compromissos em determinadas áreas também teria que ser aplicado aos EUA ("The Washington Post", 19 de novembro de 2003). Afinal, Washington já indicou abundantemente que não quer assumir na Alca obrigações em matéria de antidumping nem alterar substancialmente os seus poderosos esquemas de proteção agrícola. Em suma, a batalha apenas começou. * Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP. É autor do livro "A Economia como Ela É ..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002). Publicado no jornal Folha de S.Paulo, 20 de novembro de 2003. pnbjr@attglobal.net
https://www.alainet.org/pt/articulo/108837?language=es

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