A ALCA e o Brasil – principais pontos?
29/04/2003
- Opinión
1. A Alca foi concebida, desde o início, como projeto ambicioso e
de grande envergadura. Se vier a ser criada, ela não será uma área
de livre comércio tradicional, isto é, não envolverá apenas a
remoção de restrições tarifárias e não-tarifárias ao comércio de
bens dentro das Américas – objetivo, em si mesmo,
extraordinariamente problemático do ponto de vista brasileiro. A
agenda de negociações, formulada basicamente pelos EUA, é muito
ampla. Inclui a fixação de regras comuns para temas como serviços,
investimentos, compras governamentais, propriedade intelectual,
entre outros.
2. A liberalização proposta por Washington é acompanhada de
importantes ressalvas e exceções, que favorecem setores pouco
competitivos da economia norte-americana e preservam os
instrumentos de defesa comercial a que os EUA costumam recorrer.
3. As vantagens potenciais da economia brasileira no mercado dos
EUA estão concentradas em produtos protegidos por poderosos
lobbies (aço, têxteis, calçados, suco de laranja, por exemplo). Os
negociadores norte-americanos farão o possível para que sejam
aplicados cronogramas muito graduais de abertura às importações
nesses setores. Não se deve descartar nem mesmo a possibilidade de
que eles sejam colocados como exceções, ficando inteiramente fora
do processo de liberalização.
4. Os EUA relutam em colocar na pauta componentes cruciais do seu
arsenal protecionista, como a legislação antidumping e a política
de defesa da agricultura, sob o argumento de que esses temas devem
ser tratados preferencialmente no âmbito da OMC. Ao mesmo tempo,
querem que a Alca vá além das normas da OMC em assuntos do seu
interesse como, por exemplo, serviços, investimentos, compras
governamentais e patentes.
5. Não interessa ao Brasil participar de áreas de livre comércio
com economias muito mais desenvolvidas e poderosas – muito menos
de uma área de livre comércio do tipo da Alca, da qual fariam
parte regras comuns sobre diversos temas de importância
estratégica. As economias desenvolvidas apresentam vantagens
estruturais imensas em relação à economia brasileira. E essas
vantagens não poderão ser superadas num horizonte visível.
6. No campo macroeconômico, diversas circunstâncias relacionadas à
chamada competitividade sistêmica do Brasil (estrutura do sistema
tributário, escassez de crédito, custos financeiros, fraqueza dos
mercados de capitais domésticos, deficiências de infra-estrutura,
entre outras), colocam as empresas brasileiras em desvantagem na
disputa por mercados externos e internos. Dadas essas assimetrias
sistêmicas, a maioria das empresas brasileiras não pode enfrentar,
sem anteparos, a concorrência das empresas dos EUA ou de outros
países desenvolvidos.
7. Existem, também, dificuldades importantes no plano
microeconômico. As firmas dos EUA e de outros países desenvolvidos
são, de uma maneira geral, muito superiores às brasileiras em
termos de escala de produção, tecnologia, organização, acesso a
crédito e capital, redes de comercialização, marcas etc.
8. Uma área de livre comércio com os EUA produziria provavelmente
efeitos destrutivos em boa parte do sistema produtivo brasileiro,
especialmente nos setores mais sofisticados em que a primazia das
empresas norte-americanas é quase sempre inquestionável (por
exemplo, bens de capital, componentes eletrônicos, química,
eletrônica de consumo, software e informática). A economia
brasileira tenderia a regredir à condição de economia agrícola ou
agroindustrial e produtora de bens industriais leves ou
tradicionais.
9. Mesmo na hipótese improvável de que a Alca viesse a ser
equilibrada, com os EUA se dispondo a fazer concessões apreciáveis
em setores e temas de nosso interesse, as importações brasileiras
tenderiam a aumentar mais do que as exportações de bens e
serviços. Assim, esse acordo provocaria um aumento do
desequilíbrio externo da economia brasileira, agravando um dos
nossos problemas centrais.
10. A minuta do acordo (cuja última versão divulgada tem 10
capítulos e mais de 350 páginas) e documentos do governo dos EUA
indicam a configuração que a Alca deve tomar. No que diz respeito
ao comércio de mercadorias, o objetivo principal dos EUA é a
eliminação de tarifas de importação. Washington pretende que todas
as tarifas sejam objeto de negociação e que a maioria delas sofra
rápida redução.
11. Na área de serviços, os planos norte-americanos também são
ambiciosos. Os países membros da Alca teriam a obrigação de
proporcionar aos fornecedores de serviços de outros países membros
tratamento não menos favorável do que o concedido, em condições
semelhantes, aos fornecedores nacionais. Os EUA querem que a Alca
assegure amplo acesso a mercados para serviços financeiros,
telecomunicações, informática, serviços audiovisuais, construção e
engenharia, turismo, publicidade, serviços profissionais, serviços
de distribuição, entre outros.
12. No que se refere a investimentos, a pretensão dos EUA é que o
acordo da Alca proíba o governo de um país membro de definir
políticas que favoreçam os investidores nacionais vis-à-vis de
investidores de outros países membros, ainda que seja apenas para
compensá-los por problemas estruturais ou de natureza sistêmica.
Os EUA buscam uma definição ampla para o termo "investimento", que
inclua todas as formas de ativos com características de
investimento, como companhias, ações, certas formas de dívida,
certas concessões, contratos e propriedade intelectual.
13. Os EUA propõem, também, que o investidor tenha o direito de
transferir fundos para dentro ou fora de qualquer país da Alca sem
demora e a uma taxa de câmbio de mercado. Essa garantia cobriria
todas as transferências relacionadas a um investimento, inclusive
juros, remessa de lucros, repatriação do capital e injeção de
recursos financeiros adicionais depois da realização do
investimento inicial.
14. Washington pretende, além disso, que o acordo da Alca impeça
os governos dos países membros de estabelecer metas ou requisitos
de desempenho a serem cumpridos pelos investidores de outros
países membros, ampliando restrições já existentes na OMC. O
acordo da Alca proibiria ou restringiria, por exemplo, a definição
de níveis de conteúdo local, de preferências por bens produzidos
domesticamente e de restrições à venda de bens e serviços no
território do país receptor do investimento. Tampouco se admitiria
a especificação pelos governos de compromissos de exportação e de
transferência de tecnologia.
15. Investidores privados passariam a desfrutar de status legal
antes reservado a Estados nacionais. O investidor de um país
membro da Alca teria o direito de recorrer a arbitragem
internacional, no âmbito do Banco Mundial ou da ONU, ultrapassando
assim a legislação e o sistema judicial do país hóspede do
investimento.
16. A política de compras governamentais é outro tema que os EUA
querem submeter a detalhada regulamentação no âmbito da Alca. Para
uma ampla gama de contratos de compras governamentais, qualquer
fornecedor de bens e serviços de um outro país da Alca receberia o
mesmo tratamento que os fornecedores do país. Também ficaria
proibida a incorporação, nesses contratos, de cláusulas que
estabeleçam níveis de conteúdo doméstico, licenciamento de
tecnologia, compromissos de investimento e outros requisitos que
"distorçam" o comércio.
17. No que diz respeito a proteção da propriedade intelectual,
assim como a investimentos e compras governamentais, os EUA
pressionam pela inclusão na Alca de obrigações que vão além das já
assumidas no âmbito da OMC. A legislação dos EUA é o modelo para a
proposta apresentada na Alca e a sua incorporação ao acordo
acarretaria mudanças significativas na legislação nacional dos
demais países membros. A proposta dos EUA inclui proteção rigorosa
do copyright, das patentes, de segredos comerciais, de marcas
comerciais e de indicações geográficas. A idéia central é garantir
dentro da Alca o máximo de proteção para atividades
tradicionalmente dominadas pelos norte-americanos, que respondem
pelo grosso das inovações, patentes e marcas.
18. Com o governo de George W. Bush, as perspectivas da Alca
tornaram-se mais sombrias. Os EUA passaram a seguir, com uma dose
de franqueza bem maior do que a habitual, uma concepção peculiar
de livre comércio, que pode ser resumida da seguinte forma: por um
lado, o máximo de abertura nos temas e setores em que os EUA
apresentam vantagens competitivas; por outro, protecionismo, não
raro sem disfarces, para os setores frágeis ou pouco competitivos
da sua economia.
19. O Executivo e o Congresso foram estabelecendo, sem inibições,
restrições seletivas ao comércio internacional e novas medidas de
defesa das empresas norte-americanas contra a concorrência
estrangeira. Em agosto de 2002, o Congresso aprovou um mandato
muito restritivo para negociar acordos comerciais (Trade Promotion
Authority). As negociações da Alca ficaram basicamente
circunscritas aos temas de interesse dos EUA. Um acordo só será
concluído se o Brasil se conformar com uma negociação cada vez
mais problemática e desequilibrada.
20. Mesmo reconhecendo as desvantagens e limitações da Alca, há
quem recomende a adesão a esse acordo com o argumento de que não
participar significaria condenar o Brasil ao isolamento e à perda
de mercados. Contudo, a não-participação do Brasil em uma eventual
Alca (ou em uma zona de livre comércio com a União Européia) não
nos impediria de continuar ampliando as nossas exportações para
esses e outros mercados. A expansão do comércio internacional não
pressupõe o livre comércio. As três maiores potências econômicas
do planeta, os EUA, a União Européia e o Japão, que mantêm forte e
crescente inter-relacionamento comercial, nunca tiveram – e nem
pretendem ter – acordos de livre comércio entre si.
21. Tampouco tem cabimento a idéia de que não participar da Alca
deixaria o Brasil isolado na América. Os países americanos têm,
regra geral, economias bem menores e menos desenvolvidas do que a
brasileira; não competem de forma significativa com o Brasil nos
mercados dos EUA. Os países que poderiam concorrer mais fortemente
conosco, o Canadá e o México, já fazem parte do Nafta e a criação
da Alca não modificaria sua posição competitiva. Se o receio é que
uma Alca sem Brasil nos levaria à perda de mercados sul-americanos
para exportações norte-americanas, o governo brasileiro sempre
teria a opção de negociar acordos de livre comércio com países
vizinhos, sem ter de assinar um acordo desse tipo com os EUA.
22. A Alca, tal como concebida pelo governo e interesses
empresariais norte-americanos, acarretaria formidável perda de
autonomia na condução de aspectos essenciais da política
econômica. De todas as negociações internacionais em curso, essa é
a que representa a maior ameaça à soberania do país. Com a Alca, o
Brasil ficaria comprometido, por acordo internacional, a manter o
seu mercado interno sempre aberto para as exportações dos EUA e de
outros países do continente americano. As empresas brasileiras se
veriam expostas à vigorosa concorrência das grandes corporações
norte-americanas com todo o seu poder tecnológico, financeiro e
comercial. O Brasil teria que abrir mão de uma série de
instrumentos de política governamental, tornando-se ipso facto
incapaz de implementar um projeto nacional de desenvolvimento.
Ficariam definitivamente fora do nosso alcance muitos instrumentos
e políticas governamentais a que recorreram sistematicamente os
países hoje desenvolvidos, inclusive os EUA, ao longo do seu
processo histórico de desenvolvimento.
23. Como mínimo, o que se deve esperar é que o Brasil não se
comprometa com a Alca sem refletir longa e profundamente sobre as
implicações desse conjunto de restrições e proibições para o
desenvolvimento da economia do país no longo prazo. O que está em
discussão é o acordo econômico mais abrangente e mais importante
já negociado pelo país, que criará ampla e complexa teia de
obrigações internacionais.
24. Com a sua intransigência e o caráter manifestamente
desequilibrado das propostas apresentadas na Alca, Washington
indica que pretende levar vantagem em todas as questões
essenciais. Os EUA estão nos dando, assim, a oportunidade de
escapar da verdadeira armadilha que a Alca representa para o
desenvolvimento e a autonomia do Brasil. Se o novo governo
brasileiro atuar com coragem, diplomacia e habilidade, a Alca não
sairá do papel. E o ônus desse insucesso ficará principalmente com
os EUA.
* Resumo do trabalho "A Alca e o Brasil", concluído em março de 2003 no âmbito do Instituto de Estudos Avançados
da USP.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107444?language=es
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