Desafios éticos
24/11/2003
- Opinión
Os animais não têm ética nem moral, ao menos vistos por olhos
humanos. Agem por instinto, sem liberdade de escolha ou
discernimento consciente de seus atos. Mesmo quando um cão deixa de
avançar numa pessoa, é o instinto que o previne de um possível
castigo, caso avance. Assim, o animal pode ser domesticado,
adestrado, mas nunca dotado de ética.
Na natureza, só o homem e a mulher assumem comportamento ético. É a
partir dos 3 anos de idade que a pessoa começa a se dar conta de que
não pode fazer o que quer nem agir instintivamente. Ela começa a
perceber as relações sociais: a mãe que reclama porque a criança fez
xixi no chão; o pai que ensina a comer de tudo; a babá que lhe dá
banho todo dia. Esse condicionamento ético passa, aos poucos, para a
esfera da razão. O menino apegado à mãe e com ciúmes do pai
(complexo de Édipo) vai se convencendo de que deve deixar de lado
suas fantasias de matar o pai.
A vida social exige autolimitação de nossos impulsos, controle de
nosso instinto, seleção de nossos valores e opções que sempre
implicam renúncias. Não se pode escolher isto sem renunciar àquilo.
Em suma, aos poucos se forja em nós o comportamento ético.
Toda atitude ética está intimamente ligada aos valores morais que
predominam em nosso grupo social. São esses valores que inspiram
nossas ações e servem de referência para avaliar se elas são ou não
eticamente aceitáveis. Na moral de certos países árabes, o homem
tem mais valor que a mulher e, portanto, esta deve estar sujeita a
ele. Assim, é eticamente aceitável que o pai decida com quem a filha
deve se casar e impeça que ela mostre o rosto na rua. Na moral de
nossos avós, uma moça não deveria mostrar as pernas na rua nem o
rapaz usar brincos ou cabelos compridos. Hoje, isso é aceitável, e
passa por moralista quem recrimina tais comportamentos.
Esses exemplos mostram que a moral não é a mesma em todos os tempos,
para todos os povos. Ela resulta do processo cultural de cada povo.
Em outras palavras, do ponto de vista da razão, não há valores
morais absolutos, objetivamente inquestionáveis para toda a
humanidade. No Egito dos faraós ou no Brasil anterior a 1888, não
era considerado imoral escravizar seres humanos. Ainda hoje, não é
considerado imoral pela cultura dominante explorar o trabalho
alheio. Em muitas sociedades, ao longo da história, aceitou-se que
há seres humanos superiores (reis, nobres, brancos, sacerdotes) e
inferiores (súditos, camponeses, negros, leigos).
Aos poucos, homens e mulheres tomam consciência de seus direitos.
Quanto maior a consciência dos direitos humanos, mais ética e moral
se torna a vida social. No entanto, se olhamos em volta percebemos
que há muita falta de ética e de moral em nossa sociedade. Há,
inclusive, quem se oponha às campanhas em favor dos direitos
humanos. Por que isso?
Capitalismo e moral
A moral tem implicações políticas e econômicas. Na Idade Media, a
Igreja condenava os juros. Hoje, se tal censura perdurasse, nenhum
católico poderia ser banqueiro ou agiota. Mas, por ironia do
destino, o próprio Vaticano possui o Banco do Espírito Santo...
A ética protestante sempre recomendou a seus fiéis afinco no
trabalho e modéstia nos gastos, incentivando a poupança. Alguns
autores acreditam que tal ética foi decisiva para enriquecer países
de forte tradição protestante, como a Alemanha, a Suíça e os EUA.
No capitalismo, a moral predominante na sociedade é ambígua e
contraditória, pois o valor maior para o sistema é a acumulação do
capital. Assim, na "moral" desse sistema a propriedade privada é um
valor acima da existência humana. Basta conferir a reação de alguns
ruralistas em relação às demandas do MSTŠ Se um homem tem fome, diz
a doutrina da Igreja, ele tem direito de fazer uso da propriedade
alheia. "Maior e mais divino é o bem do povo que o bem particular",
lembra São Tomás de Aquino (De Regimine Principum - Sobre o governo
dos príncipes - 1, I Cap. 9).
A lógica do capital procura atrelar a ética social a seus interesses
e objetivos. Para ela, é aceitável o assassinato de crianças de rua
ou de líderes sindicais que lutam por reforma agrária. Incute,
inclusive, no tecido social uma dupla "moral", a privada e a
pública. O mesmo presidente da empresa que paga o anúncio
pornográfico na TV proíbe em casa que sua filha use fio dental na
praia. O mesmo comerciante que chama a polícia para o garoto que lhe
furtou uma lata de sardinhas aumenta os preços de modo exorbitante e
sonega o fisco. O mesmo vigário que prega a participação dos leigos
na vida eclesial fecha as portas da igreja se as coisas não correm a
seu modo...
A lógica do capital destrói os valores morais e corrói a ética. Foi
feita uma pesquisa nos EUA para saber em que fase da vida uma pessoa
consome mais. Verificou-se que é quando ela casa. Um casamento
sempre desencadeia consumo, desde as alianças à nova moradia,
passando pela roupa dos convidados aos presentes. Resultado,
"façamos com que as pessoas se casem várias vezes". Não é de
estranhar que as novelas de TV considerem caretice a fidelidade e
incentivem tanto a rotatividade conjugal.
O fim justifica os meios? Na política burguesa, a luta pelo poder
faz com que o fim justifique os meios. O seja, nega a ética. Seria
lícito e politicamente vantajoso utilizar qualquer meio para obter
um fim libertador? Um grupo de lavradores sem-terra poderia torturar
um latifundiário para obter uma informação considerada importante
para o seu movimento?
A história demonstra que o meio utilizado influi no caráter do fim a
ser obtido. A tortura é uma arma do opressor e todo aquele que a
utiliza se coloca do lado do opressor, ainda que com finalidades
aparentemente "libertadoras". Ao torturar, o torturador se
desumaniza e desumaniza sua vítima por convocá-la como testemunho de
seu opróbrio.
Por isso, os verdadeiros movimentos revolucionários jamais lançaram
mão da tortura. Na guerrilha de Sierra Maestra, em Cuba, torturar o
inimigo era considerado crime, ainda que se tratasse de um
torturador. Primeiro, porque a revolução não é um movimento
vingativo. Segundo, porque tratar bem o inimigo é mostrar a ele que
a guerrilha, ao contrário do exército burguês, não veio para matar,
mas para gerar mais vida. O inimigo preso era trocado por
combatentes presos. E quando retornava às suas fileiras, fazia
propaganda favorável do movimento revolucionário ao relatar o
tratamento digno que recebera. Um revolucionário que necessita
lançar mão da tortura para obter informações demonstra que se
afastou do povo. O povo sabe tudo, basta ter vínculos com ele para
que a informação flua. Na guerra do Vietnã, os vietcongs eram
violentamente torturados pelos militares estadunidenses. Quando um
soldado ou um oficial dos EUA caía em mãos dos vietcongs, era bem
tratado. Os oficiais eram levados para o antigo Hilton Hotel de
Hanói, a capital do Vietnã do Norte, onde ficava também o comando
guerrilheiro. Durante anos, a Casa Branca quis bombardear Hanói e
nunca pôde fazê-lo, porque teria que matar seus próprios oficiais no
Hilton Hotel. Assim, Hanói foi preservada.
Ao terminar a guerra, os prisioneiros foram levados de Hanói para a
base naval de Guam, no Pacífico. Entrevistados pela imprensa,
revelaram que foram bem tratados e, durante os anos de prisão no
antigo hotel, jogaram tênis, usaram a piscina e receberam revistas e
jornais dos EUA. A entrevista foi suspensa, sob alegação de que
haviam sofrido lavagem cerebral para não contar as torturas
sofridas.... Sofriam, segundo os médicos americanos, de "Síndrome de
Estocolmo", expressão utilizada para definir a admiração da vítima
por seu algoz.
Moral e política
Muito se discute, ao longo dos tempos, a ligação entre moral e
política. Há quem defenda que a política deve ser autônoma ou
independente em relação à moral. Tal proposta é atribuída ao famoso
politicólogo italiano Maquiavel (1469-1527). Daí por que se chama de
maquiavélica toda atitude política que ignora os preceitos morais.
De fato, foi Maquiavel quem sugeriu aos poderosos o princípio de que
'o fim justifica os meios'. Em seu famoso livro, O Príncipe, ele
aconselha: "... e nas ações de todos os homens, e máxime dos
príncipes, quando não há indicação à qual apelar, se olha o fim.
Faça, pois, o príncipe por vencer e defender o Estado: os meios
serão sempre considerados honrosos e por todos louvados" .
grande desafio da política libertadora é basear-se numa ética
libertadora. Não se pode construir o homem e a mulher novos usando
métodos velhos. Quando se lança mão de irregularidades, de
difamações, de trambiques, para ganhar uma eleição sindical ou
partidária, de fato se está perpetuando a velha sociedade opressora
em nome de ideais libertários. Isso é o que o Evangelho denuncia
como colocar vinho novo em odres velhos.
Em outubro de 1990, na 2ª Plenária Nacional de Movimentos Populares,
em São Bernardo do Campo (SP), um grupo de companheiros falsificou
cartões de votação para tentar ganhar uma eleição. Foi derrotado. O
grave, porém, era achar que a libertação poderia avançar utilizando
meios que são próprios daqueles que oprimem e promovem a injustiça.
A ética enraiza-se no coração humano. Não é só uma questão de
comportamento político. Ela só adquire força quando se encarna na
vivência pessoal. O opressor age movido por interesses; o
libertador, por princípios. Assim, jamais um militante da justiça
pode aceitar desviar verbas, fraudar processos eleitorais, mentir
para o povo ou fazer uso do que é coletivo para benefício pessoal.
"Aquele que é fiel nas pequenas coisas - adverte Jesus - é também
fiel nas grandes, e aquele que é injusto no pouco, também o é no
muito" (Lucas 16, 10-12).
Tais princípios devem nos servir, hoje, para avaliar as implicações
éticas das práticas políticas, sobretudo considerando que a política
é o terreno das negociações, das alianças, dos acordos. E a negação
dessa realidade pode, facilmente, abrir caminho ao fundamentalismo
(religioso) ou ao sectarismo (ideológico), instaurando um purismo ou
uma ortodoxia que tantas vidas sacrificou pelo fio da espada ou
pelos pelotões de fuzilamento do socialismo. É fácil ter razão
quando não se senta à mesa de negociação. Difícil é resguardar os
princípios e abraçar a tolerância, tendo em vista objetivos
libertadores através de meios eticamente inquestonáveis.
* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Luiz Fernando
Veríssimo e outros, de "O Desafio Ético" (Garamond), entre outros
livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/108779
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