Quem é o doente?
07/11/2003
- Opinión
A concepção de pecado atrelada a uma visão individua-lista, aliada a
um moralismo desencarnado, foi objeto da mais severa repulsa de
Jesus. Os escribas e fariseus pagavam religiosamente os impostos.
Não tocavam nos objetos considerados impuros. Prescreviam a pena de
morte para a mulher adúltera. No entanto, transgre-diam os pontos
mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade
(Mateus 23, 23).
Jesus desafiava todos os falsos moralismos. Para os judeus, a mulher
era um ser inferior ao homem; os samaritanos, tidos como hereges; e
as prostitutas, apedrejadas em público. Mas, à beira do poço de
Jacó, Jesus se abriu em longa conversa com uma mulher samaritana que
já havia vivido com cinco maridos! (João 4, 1-42).
Na tentativa de fugir a essa casuística que, por tanto tempo,
perturbou mentes delicadas e escrupulosas, os tratados de moral
passaram a abordar a questão do pecado segundo a concepção conhecida
por "ética de situação". Os atos da pessoa deixam de ser tomados
isoladamente. Considera-se agora o contexto em que ela vive, sua
história pessoal, os fatores que a induziram a fazer isto ou aquilo,
as conseqüências para si e para os outros. Um mesmo ato pode ser
praticado por diferentes pessoas sem que, necessariamente, tenha o
mesmo peso moral. Não se parte do ato em si, como se objetivamente
ele fosse "bom" ou "mau", mas da situação concreta em que a pessoa
foi levada a praticá-lo.
A liberdade não é algo que a pessoa conquista ao completar 7, 14 ou
21 anos. Nenhuma idade, nem a da razão, determina o momento a partir
do qual a pessoa se torna um ser plenamente responsável por todos os
seus atos. A vida é toda ela um aprendizado de liberdade.. Esta é
sempre inacabada, pois a pessoa vive também presa a mecanismos de
seu inconsciente, a fatores biogenéticos, a determinismos
fisiológicos, psicológicos e sociais dos quais ela nem tem
consciência, mas que moldam a sua maneira de pensar e de viver.
Experiências realizadas em hospitais psiquiátricos revelam que os
desequilíbrios biopsíquicos têm sua origem nos desequilíbrios da
própria ordem social. Quando um sistema social determina a
discriminação entre os seus membros, cria-se um consenso - para o
qual não faltam "bases científicas" - de que certos elementos são
irremediavelmente desajustados e irrecuperáveis: criminosos,
psicopatas, homossexuais, esquízofrênicos, prostitutas, neuróticos,
agressivos, depressivos, enfim, todo o conjunto de "loucos"
condenado a viver marginalizado e desprezado.
Isso ocorre em menor escala, mas na mesma proporção discriminatória,
entre os membros de uma família ou de um grupo específico que avalia
o comportamento de seus integrantes segundo o modelo ideologicamente
padronizado que é adotado. Qualquer um que não se enquadre nesse
modelo corre o risco de ser obrigado a suportá-lo ao preço de graves
conflitos internos e de tornar-se suspeito de, no mínimo, estar
doente. Assim, será convidado a submeter-se a um tratamento para
curar-se de seus "desequilíbrios" e de suas "neuroses", a fim de
readaptar-se ao modelo que dita as regras de convívio e
relacionamento entre os demais.
Mas quem é o doente, a pessoa ou o grupo social na qual ela se
insere?
* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Luís Fernando
Veríssimo e outros, de "O Desafio Ético" (Garamond).
https://www.alainet.org/pt/articulo/108745
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