A arte da palavra
05/10/2003
- Opinión
Há dias eu conversava com meu tradutor na França, Richard Roux, que é
também professor de literatura. Dizia-me, para meu espanto, que nem
mesmo na terra de Voltaire e Balzac, Rimbaud e Simone de Beauvoir, os
alunos têm, hoje, o hábito de ler literatura. Se o fazem é por dever
e não por prazer. Lêem trechos, capítulos, resumos, mas não a obra
inteira.
No Brasil, o mesmo fenômeno é constado pelo ENEM e o "Provão". Como
observou Cláudio Willer, presidente da União Brasileira de
Escritores, "pesquisas apontam níveis elevados de analfabetismo
funcional e, nossos estudantes, faltando-lhes o hábito da leitura,
escrevem e se expressam mal, e apresentam dificuldades de raciocínio
e interpretação da realidade" (jornal "Adverso", 1ª quinzena de
junho/2003, p. 10).
Muitos fatores contribuem para que certos alunos universitários não
saibam redigir uma carta sem erros de sintaxe e concordância ou
distinguir o literário do não-literário quando confrontados com uma
crônica de Machado de Assis ou uma carta de banco. Falta literatura
nos currículos escolares, como são raras as bibliotecas de qualidade
em instituições de ensino e municípios do país. Não se sabe o que não
se aprende. E sem aprendizado não há discernimento nem juízo crítico,
correndo-se o risco de confundir Gênesis, o primeiro livro da Bíblia,
com uma banda de metaleiros.
Vivemos na era imagética, sob o domínio da informática. O aluvião de
imagens vicia o olho, hipnotizando-o no close da instantaneidade, no
qual se fundem passado, presente e futuro. Perde-se,
progressivamente, a percepção do caráter histórico do tempo. Tudo
parece ser aqui-e-agora.
No século XX, a arte cinematográfica introduziu um novo conceito de
tempo. Não mais o conceito linear, histórico, que perpassa a Bíblia
e, também, as pinturas de Fra Angelico ou o Dom Quixote, de Miguel de
Cervantes. No filme, predomina a simultaneidade. Suprimem-se as
barreiras entre tempo e espaço. O tempo adquire caráter espacial e, o
espaço, caráter temporal. No filme, o olhar da câmara e do espectador
passa, com toda a liberdade, do presente para o passado e, deste,
para o futuro. Não há continuidade ininterrupta.
A TV, cujo advento ocorreu nos anos 40, levou isso ao seu paroxismo.
Frente à simultaneidade de tempos distintos, a única âncora é o aqui-
e-agora do (tele)espectador. Não há durabilidade nem direção
irreversível. A linha de fundo da historicidade - na qual se apóiam o
relato bíblico e a pregação cristã - dilui-se no coquetel de eventos
onde todos os tempos se fundem. Fred Astaire aparece morto e, sobre o
caixão, os clipes o exibem vivo, interpretando seus êxitos como
dançarino de filmes musicais.
Assim, aos poucos, o horizonte histórico se apaga, como as luzes de
um palco após o espetáculo. A utopia sai de cena, o que permite
Fukuyama vaticinar: "A história acabou". Ao contrário do que adverte
Coélet, no Eclesiastes, não há mais tempo para construir e tempo para
destruir; tempo para amar e tempo para odiar; tempo para fazer a
guerra e tempo para estabelecer a paz. O tempo é agora. E nele se
sobrepõem construção e destruição, amor e ódio, guerra e paz.
A felicidade, que em si resulta de um projeto temporal, reduz-se
então ao mero prazer instantâneo derivado, de preferência, da
dilatação do ego (poder, riqueza, projeção pessoal etc.) e dos
"toques" sensitivos (ótico, epidérmico, gustativo etc). A utopia é
privatizada. Resume-se ao êxito pessoal. A vida já não se move por
ideais nem se justifica pela nobreza das causas abraçadas. Basta ter
acesso ao consumo que propicia excelente conforto: o apartamento de
luxo, a casa na praia ou na montanha, o carro novo, o kit eletrônico
de comunicações (telefone celular, computador etc), as viagens de
lazer. Uma ilha de prosperidade e paz imune às tribulações
circundantes de um mundo movido a violência. O Céu na Terra -
prometem a publicidade, o turismo, o novo equipamento eletrônico, o
banco, o cartão de crédito etc.
Nem a fé escapa à subtração da temporalidade. O Reino de Deus deixa
de situar-se "lá na frente" para ser esperado "lá em cima". Mero
consolo subjetivo, a fé reduz-se à esperança de salvação individual.
É o passaporte que credencia o fiel a ingressar no Céu, livre das
agruras desse tempo de vida.
Por influência do cinema e da TV, agora o tempo está confinado ao
caráter subjetivo. Experimentá-lo é ter uma consciência tópica do
presente. Se na Idade Média o sobrenatural banhava a atmosfera que se
respirava e, no Iluminismo, era a esperança de futuro que justificava
a fé no progresso, agora o que importa é o presente imediato. Busca-
se, avidamente, a eternização do presente. Michael Jackson é
eternamente jovem e multidões malham o corpo como quem sorve o elixir
da juventude. Morreremos todos saudáveis e esbeltos...
Pulverizam-se os projetos, mesmo porque, na cabeça de muitos, o tempo
é cíclico e no mesmo rio corre sempre a mesma água. Outrora, havia
namoro, noivado e casamento. Agora, "fica-se". Após anos de casado,
pode-se voltar ao tempo de namoro e, de novo, ao de casado.
A destemporalização da existência alia-se à desculpabilização da
consciência. Uma mesma pessoa vive diferentes experiências sem se
perguntar por princípios morais ou religiosos, políticos ou
ideológicos. Não há pastores e bispos corruptos e utopias que
resultaram em opressão? A TV não mostra o honesto ontem, vigarista
hoje e o bandido fazendo gestos humanitários? Onde reside a fronteira
entre o bem e o mal, o certo e o errado, o passado e o futuro? "Tudo
que é sólido se desmancha no ar" irrespirável desse início de século
cuja temporalidade fragmenta-se em cortes e dissolvências, close-ups
e flashbacks, muitas nostalgias e poucas utopias. Enquanto as Igrejas
tentam chegar à modernidade, o mundo naufraga sob os ventos da pós-
modernidade.
Há, contudo, algo de positivo nessa simultaneidade, nesse aqui-e-
agora que nos impõem como negação do tempo. É a busca da
interioridade. Do tempo místico como tempo absoluto. Tempo
síntese/supressão de todos os tempos. Kairós. Eis que irrompe a
eternidade - eterna idade. Pura fruição. Onde a vida é terna.
Nas artes, a música e a poesia se aproximam, de modo exemplar, dessa
simultaneidade que volatiliza o tempo, imprimindo-lhe caráter
atemporal. Na música, nossos ouvidos captam apenas a articulação de
umas poucas notas. No entanto, perdura na emoção a lembrança de todas
as notas que já soaram antes. Em si, a melodia é inatingível, assim
como o poema, uma sucessão rítmica de sílabas e palavras sutis. O que
existe é a ressonância da nota e da palavra em nossa subjetividade.
Então, a seqüência se instaura em nós. Não é o tempo fatiado em
passado, presente e futuro. É o presente infindável. O tempo
infinito. Como no amor, em que o cotidiano é apenas a marcação
ordinária de uma inspiração extraordinária.
Entretanto, estamos tratando de literatura: sujeito, verbo e
predicado. No computador, a linguagem é reduzida a um código exíguo
que subverte toda a estrutura da linguagem. A velocidade do meio
impõe à escrita uma economia de palavras que se traduz em indigência
de significados. É como se estivéssemos retornando aos sons guturais
dos tempos das cavernas. Diante das advertências de u'a mãe aflita, a
filha de quinze anos que insistia em sair de casa à meia-noite de
sábado, para ir a uma festa, indagou: "E o quico?" A mãe supôs
tratar-se de um amigo da menina. "Quem é Quico?", reagiu. "Quico,
disse a filha, é 'o que é que eu tenho a ver com isso!".
Os gregos não possuíam textos sagrados nem castas sacerdotais. Graças
à literatura de Homero, produzida oito séculos antes de Cristo, os
gregos se apropriaram de uma ferramenta epistemológica que, ainda
hoje, nos dá a impressão de que eles intuíram todos os conhecimentos
que a ciência moderna viria a descobrir. O que seria de nossa cultura
sem a matemática de Pitágoras, a geometria de Euclides, a filosofia
de Sócrates, Platão e Aristóteles? O que seria da teoria de Freud sem
o teatro de Sófocles, Eurípedes e Ésquilo?
Os hebreus imprimiram ao tempo, graças aos persas, um caráter
histórico e uma natureza divina. E produziram uma literatura
monumental - a Bíblia - que inspira três grandes religiões: o
judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Tira-se o livro dessas
tradições religiosas e elas perdem toda identidade e propósito. No
entanto, que escola exige que seus alunos leiam autores bíblicos? Sei
de estudantes que, ao ouvir falar da briga entre Davi e Golias,
sugeriram tratar-se de lutadores de boxe. Outro supôs que as cartas
de são Paulo são aquelas escritas da capital paulistaŠ
Livro tem começo, meio e fim. Como a vida. As grandes narrativas
favorecem a nossa visão histórica e criam o caldo de cultura no qual
brotam as utopias. Pois sem utopia não há ideal e sem ideal não há
valores nem projetos. A vida reduz-se a um joguete nas oscilações do
mercado.
A literatura é a arte da palavra. E como toda arte, recria a
realidade, subvertendo-a, transfigurando-a, revelando o seu avesso.
Por isso, todo artista é um clone de Deus, pois imprime ao real um
caráter ético e um sabor estético, superando a linguagem usual e
refletindo, de modo surpreendente, a imaginação criadora.
Sem literatura corremos o risco de resvalarmos para a mesquinhez dos
jargões burocráticos, a farsa do economês que tudo explica e quase
nada justifica, a palilogia estéril da linguagem televisiva, a
logorréia dos discursos políticos, condenando-nos à visão estreita e
à pobreza de espírito despida de qualquer bem-aventurança.
Salvemos a literatura, para que possamos salvar a humanidade.
* Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto - Autobiografia Escolar"
(Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/108501
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