Assim foi, assim é

18/09/2003
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Não podendo silenciar-lhe a filosofia, acusaram Sócrates de corromper menores, induzindo-o à cicuta. Platão o resgatou do olvido e o tornou mais presente ao nosso conhecimento que milhões de nossos contemporâneos. Assim fizeram com Jeremias, acusado de "terrorista" por anunciar a justiça de Javé, condenado ao opróbrio numa cloaca, exilado de sua terra. Não nos resta um único nome dos juízes do profeta, mas seu nome e sua obra trazem, para sempre, o selo supremo da Palavra de Deus. Acusaram Jesus de subverter a ordem do Templo de Jerusalém, não respeitar o sábado, modificar a lei mosaica e usurpar o título sagrado de Messias. Prenderam-no, torturaram-no, condenaram-no sob dois processos políticos, remetendo-o ao suplício de morte. Crucificado, ressuscitou na fé e na história, paradigma de amor, presença viva de Deus entre nós. Felipe dos Santos foi o primeiro a erguer-se pela independência do Brasil. Arrastaram-no amarrado a quatro cavalos, cada um preso a um de seus membros mais longos, esquartejando-o sobre as pedras cortantes das ruas de Vila Rica. Ele e seus companheiros recusaram- se a remeter à metrópole as riquezas da colônia, num gesto ousado de soberania. Presos, foram torturados, degredados, exilados e assassinados. Tiradentes, dependurado na forca, teve salgado o solo em que vivia e sua cabeça ficou exposta como exemplo execrável. Hoje, é a figura maior em nosso panteão nacional. Caçaram-no como perigoso comunista pelas selvas da África e da América do Sul, temendo que se espalhasse, pelos corações jovens, as sementes revolucionárias da utopia. Até que, cercado na Bolívia, crivaram-no de balas, sepultando-o em local ignorado. Hoje, Che Guevara é uma estrela que comove corações, estampado altivo em vestes e adereços, ícone de esperança libertária. Assim foi com Giordano Bruno e Galileu Galilei, Joana D¹Arc e Maximiliano Kolbe, Edith Stein e Bonhoeffer, Gandhi e Luther King, todos réus de julgamentos conspurcados pela hermenêutica depravativa da lei, aquela em que o juiz se coloca acima da letra e embebe-a de espírito vingativo, rancoroso e injusto. Assim está sendo com José Rainha, Diolinda e Mineirinho, e tantos que, no Brasil, lutam por um pedaço de chão e um pouco de pão. Também foram tratados por "terroristas" tantos que lutaram pela redemocratização deste país, assim como, ao arbítrio da Justiça, foram presos, algemados, encarcerados e condenados Graciliano Ramos e Antonio Callado, Lula e José Genoíno, Dilma Rousseff e Nilmário Miranda. Meu pai era juiz. Deixou-me como herança a lição de que um julgamento injusto, uma sentença precipitada por emoções suspeitas, uma condenação indevida, serão, implacavelmente, réus da história. O direito à vida é superior à letra da lei, pois nem tudo que é legal é justo. Condenam-se líderes dos sem-terra, quando o réu deveria ser o latifúndio; homens e mulheres que lutam por direitos elementares, quando a acusada deveria ser a estrutura social que produz tão abissal desigualdade; reivindicações históricas e justas, como a reforma agrária, quando os tribunais deveriam convocar aqueles que se apossaram de terras devolutas, griladas, relegando-as ao ócio num país de famintos. A história, porém, inelutavelmente faz justiça. Se assim foi, assim é e assim será. * Frei Betto é escritor, autor de "Batismo de Sangue" (Casa Amarela), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/108415
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