Discriminação mata
12/09/2003
- Opinión
A ambigüidade moral permite a certas pessoas adotarem uma
moral de intenção desvinculada da prática moral. Alguém
é tido como "bom" e "justo" não por viver de fato
descomprometido com a injustiça, mas sim por revelar, na
polidez de suas palavras, estar dotado de "boas
intenções". Essa moral alimenta a flagrante contradição
entre a esfera subjetiva e objetiva. Uma coisa é aquilo
que a pessoa pensa; outra, aquilo que faz. O que ela diz
não corres-ponde objetivamente ao modo como vive.
A "caridade" decorrente dessa ambigüidade moral per-tence
sobretudo à esfera dos sentimentos. É um "querer bem" aos
outros que nada tem a ver com as estruturas e as relações
sociais marcadas pela iniqüidade. Uma "caridade"
polidamente educada, socialmente conveniente,
farisaicamente encobridora de um egoísmo ferrenho. Nada é
feito além do estreito círculo das relações
interpessoais.
Aquele que "quer bem" ao outro, interessa-se por ele
enquanto não se sente desafiado ou ameaçado. Quando amar
o próximo começa a exigir, de fato, amar menos a si mesmo
e arriscar-se pelo outro, então encontra-se logo uma
maneira de justificar essa mesma postura omissa que
tiveram o sacerdote e o levita na parábola do Bom
Samaritano (Lucas 10, 25-37).
A falta de amor gera discriminação. E quanto mais a
sociedade marginaliza um de seus membros, mais tende a
agravar o estado em que ele se encontra. Não basta que os
pressupostos de uma moral "psicológica" absolvam os seus
pecados. Nesse caso, o pecado é do grupo que rejeita
certo tipo de pessoa, deixando de amá-la como manda o
mais elementar dos mandamentos cristãos, ou seja, sem
procurar as causas estruturais que provocam essa situação
e tentar modificá-las.
Esse pecado pode, inclusive, levar a pessoa à morte. Seja
a morte encerrada numa vida destituída de confiança em
si, de criatividade, de alegria, de coragem de amar, de
abertura ao próximo; seja a morte física, provocada pelas
próprias condições de marginalidade a que a pessoa foi
condenada a viver.
Baseando-se nas pesquisas de W. B. Carmon, o antropólogo
Claude Lévi-Strauss mostrou como a magia de um feiticeiro
é capaz de levar à morte um dos membros da tribo: "Um
indivíduo, consciente de ser objeto de um malefício, é
intimamente persuadido, pelas mais solenes tradições de
seu grupo, de que está condenado; parentes e amigos
partilham dessa certeza. Desde então a comunidade se
retrai: afasta-se do maldito, conduz-se a seu respeito
como se fosse, não apenas já morto, mas fonte de perigo
para o seu círculo; em cada ocasião e por todas as suas
condutas o corpo social sugere a morte à infeliz vítima,
que não pretende mais escapar àquilo que ela considera
como seu destino inelutável. Logo, aliás, celebram-se por
ela os ritos sagrados que a conduzirão ao reino das
sombras.
"O enfeitiçado cede à ação com-binada do intenso terror
que experimenta, de retirada súbita e total dos múltiplos
sistemas de referência fornecidos pela conivêncía do
grupo, enfim, à sua inversão decisiva que, de vivo,
sujeito de direitos e obrigações, o proclama morto,
objeto de temores, de ritos e proibições. A integridade
física não resiste à dissolução da personalidade social."
Cannon mostrou que o medo, assim como a cólera, se faz
acompanhar de uma atividade particularmente intensa do
sistema nervoso simpático. Essa atividade é normalmente
útil, acarretando modificações orgânicas que possibilitam
ao indivíduo se adaptar a uma situação nova; mas se o
indivíduo não dispõe de nenhuma resposta instintiva ou
adquirida para uma situação extraordinária, ou que ele
considere como tal, a atividade do simpático se amplia e
se desorganiza, e pode, em algumas horas às vezes,
determinar uma diminuição do volume sanguíneo e uma queda
de pressão concomitante, tendo como resultado desgastes
irreparáveis para os órgãos de circulação. A recusa de
alimentos e de bebidas, freqüente em doentes tomados de
uma angústia profunda, precipita essa evolução, a
desidraração age como estimulante do simpático e a
diminuição do volume sanguíneo é acrescida pela
permeabilidade crescente dos vasos capilares. O
discriminado morre.
* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Paulo
Freire e Ricardo Kotscho, de "Essa Escola Chamada Vida"
(Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/108388
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