A luta contra o "latifúndio da mídia"
26/08/2003
- Opinión
Excelente a iniciativa do MST, UNE e CUT de deflagrar uma campanha
pela democratização dos meios de comunicação no país – conforme
noticiado em recente edição do Vermelho. A proposta, que incorpora uma
antiga preocupação de vários setores progressistas da sociedade,
ressurge numa hora apropriada. A mídia burguesa tem se engajado de
maneira ardilosa no novo ciclo político aberto com a vitória eleitoral
das forças de centro-esquerda no Brasil. Por um lado, esta hipócrita
bajuladora do livre-mercado mendiga servilmente as benesses do
dinheiro público para se safar da sua grave crise financeira. Por
outro, procura interferir nos rumos do novo governo, enquadrando-o no
apertado figurino do modelito neoliberal.
Na aparência, a mídia tem adotado até agora uma postura imparcial e
dócil diante do governo Lula. Mas, quando o Planalto sinaliza medidas
contrárias ao "deus-mercado" ou os setores populares ganham as ruas
para exigir mudanças, ela não vacila em destilar seu veneno. O ódio
fica evidente nas capas apocalípticas da Veja – cujo dono, a família
Civita, cedeu o prédio da sua editora para quartel-general da campanha
de José Serra –, nos editoriais rancorosos da "eclética" Folha de
S.Paulo ou na retórica irada de Boris Casoy – segundo as más línguas,
um ex-ativista do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Daí a urgência
de se "articular um movimento para reagir às tentativas de
criminalizar o movimento social", afirma Gustavo Petta, presidente da
UNE. Urge denunciar o "latifúndio da mídia", conclama João Pedro
Stedile, do MST.
PAPEL DA MÍDIA
O debate sobre o papel da mídia adquire alto relevo na atualidade.
Este complexo, que inclui TVs, jornais, revistas e também a cultura de
massas e o entretenimento, tem hoje inquestionável força na sociedade.
No passado, quando se cunhou o termo "quarto poder", o sentido era de
algo progressista, que serviria como contraponto fiscalizador dos
poderes constituídos – segundo relata um dos maiores especialistas no
tema, o jornalista francês Ignácio Ramonet. Com o tempo, porém, a
mídia se tornou parte do poder. Perdeu sua aura romântica, idílica.
Hoje, a imprensa faz o jogo manipulador das elites e faz parte do
grande capital.
A mídia contemporânea manipula mentes, uniformiza pensamentos e
condiciona comportamentos. Isto é feito de forma sutil, requintada –
através de meias verdades, notícias fora do contexto, fatos sem
vínculo com o passado, flashes instantâneos, aparência encobrindo a
essência. Além disso, diferente do passado, a mídia está incorporada
ao mundo do capital. "As corporações da mídia projetam-se, a um só
tempo, como agentes discursivos, com uma proposta de coesão ideológica
em torno da ordem global, e como agentes econômicos presentes nos
hemisférios", argumenta Dênis de Moraes, doutor em comunicação e
cultura.
Sua capacidade de manipular se manifesta até nas palavras. O próprio
termo globalização, vendido como sinônimo de um mundo sem fronteiras e
de plena harmonia, visa ofuscar a crescente barbárie capitalista. Como
confessou um dos falcões dos EUA, o sinistro Henry Kissinger, "o termo
globalização é realmente o outro nome para o papel dominante dos
Estados Unidos" (Dublim, outubro de 1999). Já outra palavra muito em
voga – reforma – tem seu conteúdo mistificado. No passado, ela
caracterizava algo progressista, identificado com as demandas
populares; hoje expressa a regressão neoliberal, a negação do direito.
Em tempos de globalização neoliberal e de regressão civilizacional, o
poder da mídia só se agigantou. No mundo inteiro, o capital
desregulamenta as leis que restringem o monopólio dos meios de
comunicação. A mídia se entrelaça com os conglomerados financeiros e
se identifica com as idéias mais fascistóides. O imperialismo
estadunidense, numa ordem unipolar, amplifica sua ideologia. Segundo
recente relatório de uma Comissão Especial da ONU, 85% das notícias
que circulam no planeta são geradas nos EUA. Cerca de duas dezenas de
grupos midiáticos, com receitas entre US$ 5 bilhões e US$ 30 bilhões,
veiculam dois terços das informações disponíveis no mundo. É uma
concentração sem precedentes na história!
MÍDIA CONCENTRADA
Nos EUA, as regras contra a concentração audiovisual foram abolidas em
fevereiro de 2002. A América Online comprou a Netscape, a revista
Time, a Warner Bross e a cadeia de notícias CNN. Já a GE, maior
empresa mundial em capitalização na bolsa, comprou a rede NBC. A News
Corporation, do direitista Rupert Murdoch, controla vários jornais
britânicos e estadunidenses (The Times, The Sun, The New York Post),
possui a rede por satélite Sky, a cadeia Fox de TV, além da produtora
de filmes 20th Century Fox.
Na Itália, Silvio Berlusconi possui as três principais redes privadas
de TV e, como chefe do Conselho de Ministros, dirige também as redes
públicas; na Espanha, o grupo Prisa possui o diário El País, a rede
Ser de rádios e a TV Canal+. Na França, o grupo Dassault, presidido
por Serge Dassault, prefeito eleito com o apoio da fascista Frente
Nacional, controla o jornal Le Figaro e pretende adquirir o seminário
L'Express e a revista L'Expansion. Já o grupo dirigido por Jean-Luc
Lagardère, afiliado do presidente Jacques Chirac, domina o setor de
revistas, de distribuição de jornais e o pólo editorial VUO (Larousse,
Laffont, Bordas). Os dois grupos têm em comum negócios na indústria
bélica - aviões de caça, mísseis, satélites. O vínculo da mídia
francesa com os "mercadores de canhões" explica sua propaganda
favorável à guerra no Iraque!
O Brasil não fica atrás neste acelerado e perigoso processo de
monopolização. O Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação
concluiu, em abril de 2002, alentada pesquisa sobre "Os donos da
mídia". Ela revela que apenas seis grupos, chamados de cabeças-de-
rede, controlam a TV brasileira - Globo, SBT, Record, Bandeirantes,
CNT e Rede TV. Estes controlam 668 outros veículos, sendo 296
emissoras de TV e 372 veículos dos demais segmentos da mídia, como
rádios, jornais e revistas. Ainda comporiam o seleto time dos "donos
da mídia" a Editora Abril, com 69% do mercado de revistas e 14% da TV
por assinatura, e os grupos O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo –
com 10% da tiragem dos jornais diários do país.
Já o segundo time é composto por alguns grupos nacionais e regionais –
como o JB e RBS; o terceiro por grupos afiliados às redes de TV; o
quarto por veículos independentes, desvinculados das redes abertas.
Existiriam no país 436 jornais diários, 1.487 publicações com outras
periodicidades, 1.460 emissoras AM e 1.225 FM, 59 emissoras em Ondas
Curtas e 70 em Onda Tropical. A pesquisa indica que nem a Internet
escapa ao monopólio da mídia. O controle dos sítios de notícia está
nas mãos dos donos das redes de TV.
Nesta disputa de gigantes, a Globo continua imbatível. Ela aglutina o
maior número de veículos, quase o dobro do SBT. Reunindo 204
afiliados, 89 TVs VHF, oito TVs UHF, 34 rádios AM, 53 rádios FM e 20
jornais, detém maior número de grupos diversificados – 40,6% de todos
os existentes vinculados às redes. Do total da verba publicitária, ela
abocanhava US$ 1,5 milhão, deixando US$ 600 milhões para o SBT e US$
300 para Bandeirantes. O resultado é uma audiência de 54%, contra 23%
do SBT na média de 2001.
O "primeiro time" controla, via leis draconianas, a programação das
emissoras afiliadas. Desrespeitando a legislação, que proíbe a
"propriedade cruzada" (decreto-lei 236 de 1967), atua como cartel. A
Globo, por exemplo, opera nos segmentos de revista e jornais, além de
dominar o mercado de TV por assinatura. Ela possui quatro jornais
próprios, mais 53 vinculados aos 138 grupos afiliados à TV, somando
uma tiragem média diária de 1.371.800 exemplares – cerca de 17% do
total de 7.760 mil exemplares diários em 2001.
PODER DE MANIPULAÇÃO
Conforme comenta Ignácio Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique, a
concentração empresarial e a falta de pluralidade na cobertura
jornalística tornam os meios de comunicação o principal agente
poluente da democracia. "A globalização econômica criou conglomerados
midiáticos e o objetivo de informar foi diluído entre outros
interesses. Eles se unem ao poder para oprimir o cidadão; este que
antes era oprimido pelo Executivo, agora é oprimido também pelo poder
midiático", afirma. "A mídia global é o que eram os missionários para
os colonizadores; prepara o terreno para a conquista econômica", diz
Suzanna George, ativista dos direitos humanos nos EUA. A manipulação
midiática nunca atingiu um poder tão destrutivo!
Dois episódios recentes, a agressão ao Iraque e a conspiração golpista
na Venezuela, são emblemáticas desta poderosa distorção. Servem de
alerta ao governo Lula e a outros ingênuos de plantão. No primeiro
caso, a mídia escondeu os verdadeiros interesses dos EUA – a guerra do
sangue por petróleo – e difundiu a versão risível de que o Iraque
colocava em risco a humanidade. Desta maneira, confirmou a máxima do
senador ianque Hiran Johnson: "A primeira vítima, quando começa a
guerra, é a verdade". Os jornalistas que desafiaram esta manipulação
foram ferozmente perseguidos. Uma lista macabra revela vários casos de
demissões e represálias, sendo mais famoso o do jornalista Peter
Arnett, demitido da rede de TV NBC.
Já na crise da Venezuela, a mídia foi o principal agente
desestabilizador no país. As três redes privadas se juntaram para
adulterar a notícia da renúncia de Hugo Chávez e, meses depois, para
convocar o locaute patronal. Segundo a jornalista Blanca Feckut, as
TVs adotaram um sistema chamado de Solo una Voz – fazendo um pool de
informações falsas. Nas primeiras horas após o golpe frustrado de
abril de 2001, os conspiradores intentaram fechar as rádios e TVs
comunitárias organizadas pelos bolivarianos. Mesmo assim, estes
espaços alternativos, assim como a ação de 1.500 motoboys que
percorreram os bairros pobres de Caracas, foram decisivos para
derrotar os golpistas. Outra importante lição para o Brasil!
Este alto poder de manipulação inclusive ajuda a entender o êxito
ideológico do neoliberalismo. Apesar do fragoroso fiasco no terreno
econômico, o projeto neoliberal conseguiu envolver importantes setores
da sociedade, inclusive parcelas dos trabalhadores. Como explica
Atílio Borón, no texto Sobre mercados e utopias: a vitória ideológico-
cultural do neoliberalismo, "a criação do senso comum penetrou nas
crenças populares, com a mídia produzindo uma lavagem cerebral que
gerou conformismo diante dos ataques". Mas, como afirma, esta vitória
é temporária, não resiste às contradições do próprio sistema
capitalista. Ele lembra uma bela citação de Rosa Luxemburgo: "Quanto
mais negra é a noite, mais brilham as estrelas".
A capacidade manipuladora desta mídia altamente concentrada, conforme
se tentou mostrar, é brutal. Mas não é invencível! Hoje a luta pela
democratização dos meios de comunicação adquire caráter estratégico.
Conforme afirma Daniel Herz, dirigente do Fórum Nacional pela
Democratização da Comunicação, "sem enfrentar a disputa pela
comunicação, nenhum Estado, partido ou setor social está habilitado a
atingir seus objetivos estratégicos". Neste sentido, é preciso
intensificar a luta de idéias na sociedade. Esta frente que já era
decisiva na luta de classes, como ensinou Engels, ganha ainda maior
revelo na atualidade.
Entre outras bandeiras, o movimento social e a intelectualidade
progressista deveriam priorizar a luta pela democratização dos meios
de informação e cultura, através de veículos alternativos, como as
rádios e TVs comunitárias, páginas na Internet, etc. Enfrentando o
falso "livre-mercado", deveriam exigir a criação de instrumentos
públicos de controle sobre a mídia e exigir a abertura de canais de TV
sob a direção dos setores organizados da sociedade. Com a vitória
eleitoral das esquerdas nas eleições de outubro, vale a pena retomar a
bandeira da CUT por uma TV pública para os trabalhadores. Nunca as
condições foram tão favoráveis para enfrentar o poder de manipulação
da mídia burguesa.
Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB,
editor da revista Debate Sindical e organizador do livro "Para
entender e combater a Alca" (Editora Anita Garibaldi).
https://www.alainet.org/pt/articulo/108274
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