Amar & armar

10/08/2003
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A morte é a nossa única certeza de futuro. Não é, portanto, uma fatalidade, mas um destino. Mas por ser a vida um milagre que insiste em prolongar-se e reproduzir-se, a morte precoce de um ser humano - causada por fome, crime ou trauma - é a mais grave ofensa à natureza e ao dom de Deus. Enquanto a ciência não ampliar nossos limites biológicos e, sobretudo, assegurar nossa sanidade mental na velhice, é vã pretensão imaginar como regra, e não exceção, uma vida centenária. O diabo é que os avanços da ciência são corrida de lebre comparados aos passos de tartaruga da política, que determina nossa qualidade de vida. No Rio, um adolescente de 17 anos fez de seu carro uma arma e, num pega, ceifou a vida de Gustavo Damasceno, de 26 anos, e feriu Ricardo Saracusa. As vítimas nada tinham a ver com a insanidade do racha. Em São Paulo, outro jovem, de 15 anos, empunhou um revólver para assustar a irmã, de 14, e a matou com um tiro na cabeça. Em Belo Horizonte, um homem atirou contra o vulto que movia-se em seu quintal. Era a filha, que retornava de uma festa. No Brasil, policiais-militares, sentindo-se impunes pelo corporativismo e imunes diante de uma Justiça recalcitrante, assassinaram 111 presos no Carandiru, na capital paulista, em 1992. Ninguém foi punido. Como permanecem fora das grades os soldados e oficiais indiciados no massacre dos 21 agricultores de Eldorado dos Carajás, a 17 de abril de 1996. Os últimos 50 anos passarão à história como a época das conquistas espaciais, da ecologia, da emancipação da mulher, da informática, da globalização e da erradicação oficial do apartheid. Resta à posteridade alcançar o fim da violência no cinema e na TV, da produção e do comércio de armas, da banalização comercial do corpo humano, da política rasteira e corrupta, da confusão entre democracia e livre mercado. É com alívio que a sociedade brasileira recebe o projeto do Estatuto do Desarmamento, aprovado semana passada por uma comissão mista do Congresso. São 20 milhões de armas ilegais circulando pelo país. E o número de homicídios supera, anualmente, as cifras de todas as guerras recentes. Em 2005, um plebiscito deverá determinar a proibição de vendas de armas no Brasil. Não se pode esperar um futuro de paz num mundo em que a moda são os raps raivosos, os Schwarzennegger espancando supostos bandidos, jogos eletrônicos que fazem da morte um brinquedo, esportes e competições que pouco devem aos gladiadores romanos. Em todo o mundo, segundo o Unicef, 250 mil crianças lutam em guerras que envolvem 29 países. Desde 1988 as guerras mataram 2 milhões de jovens com menos de 18 anos, deixando 5 milhões aleijados e 1 milhão órfãos. Em sua recente visita à África, Bush manifestou-se preocupado com os guerreiros infantis envolvidos em conflitos permanentes. Como nas áreas brasileiras dominadas pelo narcotráfico, as crianças empunham armas porque os jovens morrem cedo. Ora, o presidente dos EUA deveria ter se perguntado: e quem fabrica essas armas pesadas, os fuzis automáticos, as granadas e minas? Quem lucra com o seu comércio? As indústrias de Uganda e do Sudão? Talvez isso explique por que a proposta do presidente Lula em Evian, de tributar o comércio mundial de armas em favor do combate à fome, não obteve a repercussão que merecia. Basta clicar o botão da TV ou do computador e a vida se descerra aos olhos infantis naquilo que ela tem de mais sórdido: os rambos justiceiros acima da lei; a teleprostituição; os ratinhos que rugem à boca do leão, fazendo da tragédia humana alavanca de disputa de mercado; os programas de auditório repletos de vazio, arrancando aplausos à ridicularização do ser humano. Enquanto isso, autoridades sorriem diante do eleitorado para tentar camuflar sua conivência com o poder das armas, policiais assassinos nunca são condenados, torturadores são promovidos a cargos de confiança do poder público. Não é de se estranhar que fazendeiros se armem, adolescentes transformem um índio em tocha humana, e as ocupações de terra improdutivas causem mais alarde que a existência de latifúndios que abrigam trabalho escravo. "Armai-vos uns aos outros" parece se sobrepor ao "Amai- vos uns aos outros". * Frei Betto é escritor, autor de "Alucinado Som de Tuba" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/108043
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