Mitologia do corpo
07/08/2003
- Opinión
O cristianismo platônico cindiu, à faca maniqueísta, corpo e
alma. Apropriou-se a Igreja da alma e entregou o corpo aos
cuidados do braço secular. Inimigo da carne, o espírito
acreditou-se tanto mais próximo de Deus quanto menos
encarnado. Assim, o matrimônio, um sacramento, chegou a ser
considerado, pela teologia agostiniana, "estado de pecado
consentido", e o sexo, portal de Satanás.
De seu lado, o braço secular instituições públicas e
privadas traficava corpos de escravos e prostitutas, e
entregava à tortura inquisitorial o corpo cuja língua não
professasse que a verdade é filha da autoridade eclesiástica.
Agora, o corpo recusa-se a ser refém do espírito. Da
esquizofrenia da alma sobrepondo-se à carne, passamos à carne
sobreposta ao espírito. Modelado pela erotização do mercado,
o corpo adquire valor proporcional à sua adequação aos
critérios de beleza estimuladores de consumo.
Num país de famintos e corpos esquálidos, a glamourização das
formas induz um punhado de homens e mulheres a se submeterem a
regimes e tratamentos cruéis. Despendem tempo e fortuna com
os requintes da vaidade física, como a aranha que tece sua
própria teia narcísica, da qual se torna prisioneira. Não há
academias especializadas em malhação do espírito e ainda não
se inventou a transfusão de conhecimentos e valores de uma
pessoa a outra ou do computador à mente, de modo a fazer
coincidir a estética da aparência com a beleza da essência.
Da ascética mortificadora do corpo, passamos agora à sua
exaltação pagã. No esporte, exigem-se dele desempenhos cada
vez mais excepcionais, sobretudo em agilidade (ginastas e
jogadores) e velocidade (corredores e nadadores). No
trabalho, impõem-se-lhe uma carga estressante, seja na
atividade física, mal remunerada, seja no esforço mental. Em
casa, ele é entupido de medicamentos, para dormir ou
despertar, reduzir a melancolia ou aprimorar seus contornos.
Enquanto isso, o avanço tecnológico desapropria-nos do corpo.
O que fazer com ele se já não produz? E a libido é socialmente
controlada como valor comercial. É o que Marcuse chamou de
"dessublimação repressiva" da sexualidade. O corpo esculpido
segundo o modelo grego nu, sadio, forte e belo é a criação
mitológica mais recente, ainda que desprovido de alteridade.
A libertação descentra-se da luta de classes para centrar-se
no corpo, já que o neoliberalismo tenta suprimir a pergunta
sobre o sentido da existência. Para ele, basta desfrutá-la.
Merleau-Ponty enfatizava que temos um corpo e somos o nosso
corpo. Investimos em sua preservação (práticas higiênicas e
culinárias), em sua apresentação (cosméticos e vestuário) e em
suas expressões afetivas (sinais emocionais). Tais expressões
são o nosso tendão de Aquiles, sobretudo se o nosso corpo é um
poço de mágoas, ressentimentos, invejas, e faz da língua uma
faca afiada que retalha, em tiras de desafeto, o respeito ao
outro.
Em Jesus, Deus assume o corpo humano. "O Verbo fez-se carne",
proclama o evangelho de João. A prática de Jesus
caracterizou-se pelo resgate do corpo: se doente, é curado; se
oprimido, libertado; se condenado, perdoado; se excluído,
acolhido. E sempre amado.
Jesus deixou que tocassem seu corpo, a ponto de uma prostituta
lavar-lhe os pés e enxugá-los com os cabelos, beijá-los e
ungi-los com perfume (Lucas 7, 36-50). E fez de dois recursos
indispensáveis à sobrevivência do corpo a comida e a bebida,
pão e vinho sacramento, no qual o seu corpo eucarístico nos
é dado como alimento para a vida eterna, desde que, agora,
saibamos, no amor, testemunhar que a vida é terna.
Creio que o Universo é o ventre divino no qual estamos sendo
gerados para a vida onde toda dor estará erradicada pela
soberania do amor.
* Frei Betto é escritor, autor de "A Obra do Artista uma
visão holística do Universo" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/108040
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