O estágio atual da luta contra a ALCA
21/07/2003
- Opinión
O que há de acúmulo? Já existe acúmulo nos movimentos sociais sobre
a origem, os objetivos e efeitos perversos da Alca. Há consenso de
que esta imposição dos EUA representa um atentado à soberania das
nações, um novo tipo de colonialismo; uma brutal regressão social;
e um virulento ataque à democracia. Apesar do funcionamento
"sigiloso" da Alca, com seus nove grupos de negociação e três
consultivos, as negociações vazaram e confirmaram o perigo desta
proposta. A Alca será tão nefasta como o Nafta para os mexicanos;
no que for diferente, será para pior. Com base nesta compreensão, o
Brasil saiu na frente na campanha contra a Alca, com as marchas no
Fórum Social Mundial em Porto Alegre e o plebiscito que coletou 10
milhões de votos, com a ajuda militante de 150 mil ativistas. Esta
rica experiência se irradiou pelo continente, como atestam as
crescentes mobilizações em todos os países do continente – vide
relatos da Secretaria Executiva do Grito dos Excluídos
(www.gritodosexcluidos.com.br).
O que há de novo? Do plebiscito de setembro para cá, muita coisa
mudou. A política estadunidense ficou ainda mais agressiva – a
sangrenta agressão ao Iraque é a prova cabal. Já a resistência
popular na América do Sul também cresceu, com vários levantes
socais, como na Bolívia e Paraguai, a derrota do golpismo na
Venezuela e, principalmente, através do caminho institucional-
eleitoral, com a vitória de Lucio Gutierrez no Equador, de Néstor
Kirchner na Argentina e, em especial, de Lula no Brasil. As
possibilidades para o avanço desta luta hoje são maiores; mas há
inúmeras armadilhas no horizonte. Como diz a nova cartilha da
campanha contra a Alca, "no Brasil, e na América Latina toda, a
eleição de Lula mudou um pouco as perspectivas de atuação... O
governo precisa de respaldo para assegurar e reforçar a sua posição
contra as pretensões hegemônicas dos EUA". É neste novo contexto,
contraditório e complexo, que se enquadra a continuidade da
campanha contra este projeto de anexação dos EUA.
Agressividade do império
O imperialismo estadunidense está cada vez mais prepotente. O
documento "A estratégia de segurança nacional", publicado em 20 de
setembro de 2002, evidencia o endurecimento do governo dos EUA. Ele
justifica a política de intervenção e agressão militar como
indispensável para resolver a crise econômica desta potência, como
"estratégia única para conquistar o êxito nacional". Considera como
parte da sua estratégia de segurança nacional a imposição da
desregulamentação, abertura comercial, privatizações e movimentação
irrestrita de capital nos países periféricos, dependentes. Em tom
arrogante, o texto afirma: "Trabalharemos ativamente para levar a
esperança da democracia, do desenvolvimento, dos mercados livres e
do comércio livre a todos os rincões do mundo... O conceito de
livre mercado surge como um princípio moral antes de ser converter
num pilar da economia".
Já em recente mensagem enviada ao Capitólio, o secretário do
Escritório de Representação Comercial dos EUA (USTR), Robert
Zoellick, fala sem papas na língua que "serão usados todos os meios
para os EUA obterem vantagens totais" nas negociações da Alca.
Enaltecendo George Bush, o bajulador diz que o atual presidente
"está restaurando a liderança norte-americana na área de comércio e
fará pressões agressivas para assegurar os benefícios da abertura
comercial para as famílias, os fazendeiros, empresas, operários e
consumidores". A demagogia reflete as eleições do próximo ano nos
EUA, indicando maior enrijecimento do protecionismo ianque.
Desavergonhado, Zoellick afirma que "os EUA estão exercendo
pressões" para garantir "o cumprimento de uma visão norte-americana
que data do século 19", numa clara referência à famigerada Doutrina
Monroe – "a América para os americanos", defendeu o presidente dos
EUA.
Na época, um secretário do governo foi mais explícito: "A América
para os americanos. Ora, eu proporia com prazer um aditamento: para
os americanos, sim senhor, mas bem entendido, para os americanos do
norte. Comecemos pelo nosso caro vizinho, o México, de quem já
comemos um bocado em 1848. Tomemo-lo. A América Central virá
depois, abrindo nosso apetite para quando chegar a vez da América
do Sul. Olhando para o mapa, vemos que aquele continente tem a
forma de presunto. O Tio Sam é bom de garfo: há de devorar o
presunto. Isto é fatal, isto é apenas uma questão de tempo"
(Discurso de William Evarts, secretário de Estado, em reunião com
financistas de Nova York). Pouco depois, outro presidente, Robert
Taft (1909-1913), voltaria a explicitar o desejo: "Não está muito
longe o dia em que o hemisfério será nosso em sua totalidade, como
de direito já o é em virtude da superioridade da nossa raça".
Agora, na fase da unipolaridade imperial, os EUA pretendem de fato
levar a cabo esse antigo sonho!
Diante dos avanços da resistência popular no continente, das
fraturas em setores das classes dominantes latino-americanas e dos
resultados adversos em recentes eleições presidenciais, os EUA já
sinalizam para mudanças na sua estratégia. Optam pela lógica do
"dividir para reinar". Procuram "bilateralizar" as suas ofertas de
acesso ao mercado, reservando aos países do Mercosul as condições
menos favoráveis; e tentam utilizar países como Chile e México para
enquadrar o Brasil. Isto ficou patente no encontro da Alca em
fevereiro passado. Como explica a cartilha da campanha, a proposta
apresentada na ocasião pelos EUA "visa impedir qualquer tentativa
dos países de formar grupos de resistência, como a recente
iniciativa diplomática brasileira de negociar em conjunto com o
Mercosul. Além disso, a proposta busca o enfraquecimento do próprio
Mercosul, cujo pleno funcionamento não interessa aos EUA".
Ao mesmo tempo em que tentam impor um ritmo mais agressivo para a
implantação da Alca, os EUA reforçam os seus mecanismos
protecionistas. É o caso dos volumosos subsídios dados à
agricultura, que inviabilizam qualquer capacidade competitiva dos
produtos brasileiros e que já obrigou os defensores do "livre
comércio" no país a fazerem mea-culpa. Em recente editorial, o
insuspeito O Estado de S.Paulo reconheceu entristecido. "Há muitos
bons motivos pelos os quais o governo brasileiro deveria trabalhar
pela formação da Alca, mas dificilmente se passa uma semana sem que
os norte-americanos ofereçam argumentos ainda mais fortes aos que
se opõem a esse acordo". Além da agricultura, os EUA impõem outras
medidas não-tarifárias, como leis fitosanitárias e antidumping,
para proteger setores fragilizados da sua economia. Entre janeiro e
abril de 2003, por exemplo, as exportações de aço brasileiro para
os EUA diminuíram 51,6% em relação ao ano anterior, segundo o
jornal Gazeta Mercantil.
Estratégia do governo
Frente a estes e outros fatos gravíssimos, que confirmam que a Alca
é uma pura anexação do continente, o novo governo brasileiro adota
uma postura nitidamente diferenciada do anterior. Se na política
macro-econômica prevalece o continuísmo, com a manutenção do
receituário neoliberal e a proposição de uma reforma previdenciária
fiscalistas e privatizante, na política externa o governo Lula tem
apresentado uma posição mais avançada, mais altiva, em defesa da
soberania nacional. Isto é um fato, apesar de todo o jogo de
contradições, reconhecido por vários setores da sociedade. No
artigo "A política externa em boas mãos", o economista Paulo
Nogueira Batista Jr. afirma que "onde estão ocorrendo mudanças
positivas é na área da política externa. Nesse campo, o governo
Lula começou a se distanciar da orientação de FHC".
Já a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), na sua
"análise de conjuntura", argumenta que "fora da política econômica,
há alentadores sinais de mudança em relação ao governo anterior.
Destaca-se a política externa, que tem priorizado a defesa da
soberania e dos interesses do Brasil. Mudanças internas no
Itamaraty e o ritmo mais lento nas negociações da Alca podem levar
à rejeição de uma proposta nos mesmos moldes do Nafta... Além
disso, o arquivamento do acordo de concessão aos EUA da base
militar em Alcântara/MA confirma a opção por uma política externa
soberana, que pode tornar-se um dos eixos estruturantes das
mudanças, na medida em que conquistar o apoio para o
desenvolvimento do Brasil".
Tudo indica que o governo Lula traçou uma estratégia bem definida
para a área externa. Em linhas gerais, ela teria quatro eixos:
centralizar e fortalecer o poder de negociação do Itamaraty;
protelar e fatiar a Alca; fortalecer o Mercosul, apostando na
ampliação da integração latino-americana; e diversificar as
relações comerciais e políticas do Brasil. Nos bastidores, comenta-
se que não há consenso absoluto em torno desta estratégia, o que só
reforça a tese de que este será um governo em disputa entre
continuidade e mudança. Em texto recente, Marcio Pontual relata uma
reunião no Ministério de Relações Exteriores, em junho, em que
estas diferenças ficaram nítidas. De um lado, os representantes do
MRE; do outro, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues,
"bastante prepotente", colocando seu ministério como interlocutor
nos acordos mundiais, inclusive com a criação da Câmara Temática de
Negociações Agrícolas Internacionais.
Apesar dos entreveros, que tendem a crescer – até porque a ação
externa marcha na contramão da política econômica em vigor, que é
determinante para os rumos do país -, até agora tem prevalecido a
orientação citada. A indicação para o posto-chave de secretário-
geral do Ministério de Relações Exteriores do embaixador Samuel
Pinheiros Guimarães, que foi exonerado por FHC por sua corajosa
militância contra a Alca, foi um sinal alentador neste sentido. Em
curto espaço de tempo, o Itamaraty passa por importantes mudanças,
reforçando seu papel. Houve a substituição do embaixador Clodoaldo
Hugueney da função de negociador da Alca e a indicação de Carlos
Alberto Simas Magalhães, ligado ao secretário-geral. Também foi
criada a subsecretaria geral para a América do Sul, concentrou-se a
negociação da Alca no Itamarati e houve o reforço da equipe de
negociadores – o que é essencial para o futuro das conversações.
Quando Lula tratou Robert Zoellick de "sub-do-sub-do-sub", já que
este provocador havia sugerido ao Brasil negociar com os pingüins
caso não aderisse à Alca, a ironia cumpriu seu papel. Só que
Zoellick não é um mero "sub". Ele chefia uma agência criada pelo
congresso dos EUA em 1962, instalada num prédio de seis andares nas
mediações da Casa Branca, que tem status ministerial. O Escritório
de Representação Comercial dos EUA (USTR) tem orçamento bilionário
e conta com 185 funcionários, 20 deles lotados na sede de Genebra,
num prédio vizinho ao da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Zoellick possui título de embaixador e responde diretamente ao
presidente Bush. Já o Itamaraty foi desmontado por FHC, que
repassou estas negociações a um grupo de 45 funcionários – nenhum
deles especialista em Alca. O esforço para dar musculatura ao
Itamaraty é essencial para a defesa da soberania do Brasil!
Quanto à decisão de protelar as negociações da Alca, tudo ainda é
muito nebuloso e enrustido. Surgem na imprensa alguns sinais neste
rumo – e, como diz o ditado, onde há fumaça, há fogo! A decisão do
governo Lula de remeter temas essenciais para os EUA – serviços,
investimentos, propriedade intelectual, compras governamentais –
para a esfera da OMC inviabiliza as negociações da Alca. Seria a
resposta à prepotência norte-americana, que anunciou que não
negociará na Alca as questões do subsídio agrícola e das leis não
tarifárias, de interesse do Brasil, também remetidas à OMC. Se
estas decisões vingarem, os prazos para a Alca empacarão de vez! Na
OMC a disputa interimperialista é maior e o tempo de negociação é
bem mais dilatado. Um texto elucidativo do ministro Celso Amorim
("Inserção Global do Brasil: OMC, Mercosul, Alca e ZLC com a União
Européia", encontrado na página www.mre.gov.br), aponta para este
impasse.
Se esta tendência se confirmar, o estardalhaço da mídia sobre o
recente encontro dos presidentes Bush e Lula, que teria reafirmado
o prazo de 2005 para vigência da Alca, não se justifica. Como
argumenta João Pedro Stedile, dirigente do MST, este alarde "trouxe
muita confusão e certo desânimo na militância". Para ele, o que
houve de fato nesta reunião "foi pura encenação. Nada de importante
foi assinado ou avançou". A mesma opinião é compartilhada pelo
sociólogo Emir Sader, idealizador do Fórum Social Mundial, para
quem o encontro foi "uma conversa de protelação", em que "tudo
cheira a blefe de parte a parte". Mais incisivo ainda é o
embaixador brasileiro nos EUA, Rubens Barbosa, que presenciou a
reunião. "Não sei de onde tiraram isso de que houve uma mudança, um
recuo". Segundo garante, "a Alca apareceu na reunião de passagem" e
"nós reafirmamos nossa posição sobre o rumo das negociações".
Já os outros dois movimentos citados são explícitos. O governo Lula
tem sido contundente na defesa do Mercosul e da integração
regional. Na reunião ministerial da Alca em fevereiro, propôs como
mecanismo para fortalecer o Mercosul a fórmula de negociação 4 + 1.
A iniciativa causou a irritação dos falcões dos EUA. Robert
Zoellick esbravejou: "Não aceitamos a proposta do Brasil para
negociar um acordo entre o Mercosul e os EUA". Em junho, Lula
esteve no encontro da Comunidade Andina de Nações (CAN), no povoado
colombiano de Rionegro, e assinou protocolo fixando prazos para
união entre Mercosul e CAN. Além das tratativas diplomáticas, o
governo tem adotado medidas concretas no rumo da união, reforçando
o BNDES como indutor econômico, via milionários projetos de
investimentos nos países da região.
Já no campo político, o governo também manobra para reforçar seu
projeto de integração. Não vacilou em receber Néstor Kirchner na
véspera da eleição na Argentina e em aprovar investimentos de US$ 1
bilhão no estratégico país vizinho, numa nítida ação para dinamitar
Carlos Menem, o homem que se gabava de ter "relações carnais com os
EUA". Também teve papel ativo no enfrentamento da crise na
Venezuela, contrapondo-se aos golpistas, ajudando a furar o lockout
petroleiro e aprovando um empréstimo de US$ 1 bilhão para infra-
estrutura no país irmão. No caso de Cuba, o governo escapou das
armadilhas dos EUA, evitando condenar as medidas contra os
"dissidentes" e ainda propôs o ingresso de Cuba no Grupo do Rio. O
Brasil também rejeitou proposta dos EUA de incluir as Farc na lista
de organizações terroristas.
Por último, no que se refere à diversificação das relações
políticas e comerciais no mundo, as iniciativas do governo têm sido
ousadas. No episódio da agressão ao Iraque, Lula foi incisivo na
crítica ao belicismo dos EUA e procurou articular os países do
subcontinente contra a guerra, mas ficou isolado. Já nos fóruns
mundiais, ele tem pregado a multipolaridade e o reforço da ONU.
Além disso, seu governo intensifica as relações bilaterais com
China, Índia, África do Sul e Rússia e fala na criação do G-5, em
contraposição ao grupo dos sete ricos. Em recente discurso, Lula
afirmou: "Eu disse aos presidentes da China, Rússia, Índia e África
do Sul: nós não precisamos ser convocados pelo G-8 para falar das
nossas reivindicações. Nós, sozinhos, temos força suficiente para
estabelecer uma política de troca entre nós e, quando a gente fizer
isso, o G-8 vai nos chamar e vai nos respeitar muito mais".
A estratégica, como se observa, está bem articulada, mas isto não
significa que vai dar certo. O jogo de pressão neste campo é
pesado. As chantagens do "deus-mercado" são violentas; as ameaças
do império são implacáveis. Num mundo cada vez mais "globalizado",
sob a hegemonia do vampiro neoliberal, as relações externas tornam-
se um eixo estruturante de qualquer projeto de mudança, como aponta
a CNBB. Para fazer vingar a integração latino-americana, o sonho da
Grande Pátria de Simon Bolívar, será preciso pavimentar um poderoso
campo de pressão popular para se contrapor à violenta pressão do
capital. Do contrário, mais uma vez na história este projeto não
vingará. Neste sentido, os movimentos sociais devem reforçar a
resistência, preservando a sua autonomia; mas, além disso,
necessitam também apresentar suas propostas concretas. No atual
quadro de forças, faz-se necessário combinar resistência e
alternativas.
Polêmica sobre o mercosul
O problema neste debate estratégico é definir quais são as
alternativas, mesmo que táticas, no momento atual. Neste ponto,
ainda existe muita controvérsia nos movimentos sociais. Alguns
setores, a partir de um justo balanço crítico do Mercosul, rejeitam
por completo esta proposta. Para o Sindicato dos Metalúrgicos de
São José dos Campos, o Mercosul faz parte "dos planos do
imperialismo de recolonização" da região e a única "alternativa à
Alca é a luta pelo socialismo". Já outras correntes encaram este
tratado regional como contraponto tático à ofensiva dos EUA. Alegam
que o atual momento é propício para um projeto mais ousado de
integração latino-americana no enfrentamento ao neoliberalismo e ao
"império do mal".
O debate realmente não é simples; exige muito equilíbrio e maior
aprofundamento. O Mercado Comum do Sul entrou em vigor em 1o de
janeiro de 1995, após longa fase de negociações iniciada nos
governos Sarney e Raul Alfonsin em 1985. Num contexto de
redemocratização destas nações, Brasil e Argentina firmaram doze
protocolos de cooperação. Já no Tratado de Assunção, de março de
1991, os quatro países do Cone Sul (Uruguai, Argentina, Brasil e
Paraguai) definiram como sua meta "o desenvolvimento com justiça
social". Na seqüência, em dezembro de 1994, foi assinado o
Protocolo de Ouro Preto, considerado como o documento chave do
Mercosul; Chile e Bolívia foram incorporados no tratado como
convidados.
Esse processo de integração regional, que já quase teve a sua morte
decretada, resistiu às intempéries. No passado, outras iniciativas
similares penaram com as pressões das forças adversas – como a
Associação Latino-Americana de Livre Comércio, criada em 1962; o
Pacto Andino, em 1969: e a Associação Latino-Americana de
Integração. No entanto, o Mercosul nunca conseguiu se firmar como
um autêntico pólo de integração. Acabou se restringido à união
aduaneira, a serviço das grandes empresas – principalmente do ramo
automotivo. Para o economista Henrique Rattner, autor do livro
"Mercosul e Alca", até hoje ele pecou por sua "orientação
essencialmente comercial e financeira do processo de integração,
sem preocupação maior com as dimensões cultural, política,
trabalhista e ambiental do espaço geográfico".
Apesar destas limitações, hoje o Mercosul volta a despertar enorme
interesse dos setores progressistas e de esquerda do continente.
Hugo Chávez, por exemplo, trata o seu revigoramento como decisivo
para a viabilização da sua proposta de construção da Alternativa
Bolivariana das Américas (Alba), que seria o contraponto à Alca. Já
o dirigente Fidel Castro afirma que a consolidação do Mercosul é o
caminho para viabilizar a integração latino-americana. Heinz
Dieterich, um renomado estudioso das questões regionais, vai ainda
mais além na sua defesa desta união. Para ele, a nova situação
política do continente criaria as condições para uma "segunda
independência" da América Latina. Suas palavras são contundentes:
"Pela primeira vez desde a independência formal de 1825, que a
alienação do Brasil, Argentina, Cuba e Venezuela produzem forças de
gravidade capazes de neutralizar a força de gravitação do sol
imperialista hemisférico... A nossa única possibilidade de
sobrevivência reside no Bloco Regional de Poder (BRP). Fora deste
bloco, não há salvação para nenhum país latino-americano... Hoje em
dia nenhuma nação pode ser livre nem soberana se não toma parte de
um BRP. Com inteligência e audácia, os presidentes Hugo Chávez,
Fidel Castro, Lula da Silva e Néstor Kirchner tem tomado esta
realidade como premissa fundamental da sua política, tratando de
construir o Bloco de Poder Sul-Americano, a partir do Mercosul e da
Comunidade Andina. Nos movimentos sociais da América Latina,
entretanto, esta consciência está atrasada. E sem o apoio dos
movimentos de massas, os líderes políticos mencionados não terão
força para converter a estratégia de sobrevivência disponível em
realidade".
Tática do movimento social
Como se observa, desde a realização do vitorioso plebiscito contra
a Alca, em setembro, muita água rolou em nosso continente. O
império ficou ainda mais agressivo, mas nossa resistência também
avançou. Hoje se discutem, inclusive, alternativas à Alca. Diante
deste novo quadro, carregado de possibilidades e cheio de
armadilhas, quais os desafios dos movimentos sociais brasileiros?
De cara, antes mesmo de elaborar um plano concreto de ação, é
preciso definir nossa estratégia de atuação. Nela ganha relevo a
necessidade vital de garantir a autonomia dos movimentos sociais,
não confundindo sua ação com a do novo governo.
Nem governos mais radicalizados, como o de Hugo Chávez na
Venezuela, tiveram forças até agora para romper formalmente com as
negociações da Alca. No caso do novo governo brasileiro,
condicionado por inúmeros obstáculos e marcado pela intensa disputa
entre continuidade e mudança, o jogo de pressão será ainda mais
violento. Dois extremos seriam fatais para os movimentos sociais. O
primeiro é o do apoio passivo, da confiança cega nos novos
governantes, o que fragilizaria a nossa capacidade para pavimentar
o indispensável campo de pressão popular por mudanças, contra a
Alca. O segundo, também pernicioso, é o do voluntarismo infantil,
que não leva em conta as mudanças efetuadas e a real correlação de
forças.
Feitas estas ressalvas, de caráter estratégico, o plano concreto de
luta contra a Alca já aparece desenhado. As propostas apresentadas
por João Pedro Stedile, dirigente do MST, indicam o caminho da
continuidade da campanha. Entre outras medidas, ele propõe ocupar
os novos espaços que se abrem na sociedade para ampliar a luta
contra a Alca – com debates nas rádios e TVs, nas universidades, no
parlamento; reforçar a coleta de assinaturas exigindo a convocação
do plebiscito oficial sobre o tema; trabalhar pela aprovação do
projeto de plebiscito do então senador Saturnino Braga; participar
ativamente da mobilização mundial contra a Alca/OMC que ocorrerá
entre os dias 09 e 13 de setembro. Apesar das armadilhas, as
condições para o êxito da luta contra este projeto dos EUA de
anexação do continente são melhores do que ontem!
* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB,
editor da revista Debate Sindical e organizador do livro "Para
entender e combater a Alca" (Editora Anita Garibaldi, 2002).
Intervenção apresentada no Curso Nacional de Formadores da Campanha
Contra a Alca, realizado em 5 de julho com a presença de
aproximadamente 70 lideranças do MST, CUT, Pastorais Sociais da
Igreja, ONG's e outros movimentos sociais brasileiros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107938
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