A universidade no fome zero

15/07/2003
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A participação das universidades brasileiras no Fome Zero é de grande importância, pois tecnologia, conhecimento e educação são decisivos para enfrentar de maneira definitiva a erradicação da fome. Três linhas de políticas convergem à segurança alimentar: políticas estruturais, voltadas para as causas profundas da fome e da pobreza; políticas específicas, voltadas para atender diretamente as famílias quanto ao acesso ao alimento; e políticas locais, que podem ser implantadas por prefeituras ou pela sociedade civil. No conjunto, são 25 políticas integradas por mais de 40 programas para melhorar a qualidade, a quantidade e a regularidade necessária da alimentação das famílias beneficiadas pelo Fome Zero. Algumas dessas políticas podem ser implementadas imediatamente pela sociedade civil, por empresas, instituições de ensino superior ou por um grupo de amigos, sem necessitar uma ação pública. Outras, porém, necessitam mudanças na legislação ou investimentos em infra-estrutura para que possam ser realizadas. Atuação das Universidades no Fome Zero As ações, no campo estrutural, vão do apoio à educação básica e à requalificação dos indivíduos de baixa renda, até a pesquisa científica e tecnológica. Embora não seja função da universidade alfabetizar adultos ou oferecer cursos profissionalizantes de nível médio, ela reúne qualidades, em termos materiais e de recursos humanos, para essa tarefa, e em condições mais adequadas que qualquer outra instituição. A universidade deve se articular com as demandas sociais da comunidade que gravita em torno de suas atividades. O apoio técnico pode se dar em diferentes áreas: preparação de projetos para a construção de casas populares; acompanhamento da saúde das famílias; assessoria contábil-financeira para a abertura de pequenos negócios; assistência técnica e agrícola; treinamento de professores, cursos de alfabetização para adultos etc. A universidade deve "adotar" a localidade, instalando posto de saúde, gabinete dentário, escola etc, com os estudantes desenvolvendo trabalhos na sua especialidade ou projetos de pesquisa em nível de pós-graduação; a intervenção pode também ser dirigida a áreas urbanas próximas dos campi universitários, como favelas, bairros populares, ou junto à moradores de rua. Cursos de capacitação ou profissionalizantes, programas para o primeiro emprego, dirigidos a jovens com oportunidades restritas, podem ser ministrados por estudantes dos cursos de pós-graduação, como parte do seu processo de formação. As universidades particulares também podem, como empresas, abrir vagas em seu quadro de pessoal destinadas a jovens que nunca trabalharam. Seria importante que as universidades destinassem parte da sua receita para um fundo de apoio a projetos comunitários. Estudantes, docentes e funcionários fariam doações a serem descontadas no pagamento das mensalidades ou no recebimento dos salários. Os valores dessa conta, por sua vez, seriam destinados a projetos comunitários ‹ tocados por novos microempresários locais ‹, voltados para a prestação de serviços ao público freqüentador dos campi. Políticas específicas As instituições de ensino podem ministrar cursos, dar treinamento profissional e fazer inspeções de saúde, além de disponibilizar instalações, salas de treinamento, materiais e máquinas para a realização de cursos técnicos aos beneficiários do Cartão Alimentação. Devem garantir ao funcionário ou estudante grande parte das necessidades nutricionais diárias no seu próprio local de trabalho ou estudo; disponibilizar seus equipamentos de alimentação à comunidade; promover doação emergencial de cestas básicas. As universidades devem ainda garantir o direito das suas funcionárias-mãe à amamentação, manter creches registradas no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e fiscalizar a alimentação suplementar fornecida por esses estabelecimentos para os filhos de seus servidores. Podem treinar e fornecer voluntários (docentes, funcionários e estudantes), franquear o acesso às suas instalações médicas ou ambulatoriais para famílias cadastradas ou mesmo realizar campanhas de reforço nutricional e vacinação nas suas comunidades. Precisam, finalmente, orientar a sociedade na educação para o consumo de alimentos. A atividade de educação e também a pesquisa científica e tecnológica, devem ser exercidas com maestria pela universidade. A ampliação da merenda escolar é outro campo em que a universidade pode colaborar. Junto às APMs, a comunidade universitária pode apoiar a alimentação infantil, com recursos, conhecimento e pessoal, e melhorar e reestruturar todo o sistema de compra institucional. Políticas locais A regionalização e a administração das diferenças culturais é um ponto forte no Programa Fome Zero. As universidades saem na frente por terem grande presença nos principais núcleos urbanos e também nas zonas rurais, comunidades indígenas, quilombos, assentamentos de reforma agrária e outros. Na zona rural encontra-se grande contingente de brasileiros vulnerável à fome. A universidade pode promover a melhoria na renda e nas condições de alimentação dessas populações de duas formas: apoiando as atividades mercantis agropecuárias e não agropecuárias, e a produção para o autoconsumo. Seria importante as universidades participarem da formação de Bancos de Alimentos em pequenas e médias cidades, através de doações de gêneros alimentícios, empréstimos de veículos para transporte, depósitos, embalagens etc.; colaborando com as instituições que atendem à população alvo do programa, porque os Bancos de Alimentos em geral apenas complementam a alimentação; mobilizando voluntários profissionais, como nutricionistas, microbiologistas, contadores, motoristas, entregadores e ajudantes. A universidade como instituição, e também como comunidade envolvida em projetos de cidadania, pode ceder espaços, em comodato, para a produção de verduras, frutas, ovos etc., por parte de trabalhadores desempregados, fornecendo materiais e assistência técnica para esses produtores, e adquirir produtos desses cultivos para os restaurantes, cantinas e cafés instalados no campus. O Fome Zero incorpora ações a serem desenvolvidas nas áreas urbanas das pequenas e médias cidades, e propõe medidas para o combate à fome nas regiões metropolitanas. Nessas áreas, a pobreza e a fome têm crescido de forma mais dramática. Num programa de criação de restaurantes populares, a universidade pode se engajar oferecendo serviços técnicos de: nutricionistas, engenheiros de alimentos, administradores, economistas etc. Restaurantes do campus e restaurantes populares situados nas imediações podem negociar compras conjuntas com os seus fornecedores locais, preparando cardápios e treinando pessoal, contribuindo assim para o barateamento das refeições. Nas regiões metropolitanas há também um importante trabalho a ser feito a partir das doações de alimentos. A universidade pode colaborar com doações em gêneros alimentícios ou mesmo com trabalho voluntário. Sabe-se que grande quantidade de alimentos não aproveitados é jogada fora pelas cantinas e restaurantes do campus. As instituições beneficentes ou um Banco de Alimentos poderiam captar os alimentos doados, separando-os, e até mesmo realizando algum processamento para a sua distribuição via equipamentos de apoio. A universidade pode ajudar com seus técnicos e especialistas, fomentando formas de atuação através de mecanismos associativistas, envolvendo produtores e pequenos varejistas para a criação de Centrais de compra e distribuição. Exemplos de ações das Universidades * A Universidade Federal do Pará criou, em 1992, o Programa Poema ­ Pobreza e Meio Ambiente da Amazônia que, em parceria com produtores rurais, empresários, ONG¹s e órgãos públicos, faz estudos e experiências de produção, gerenciamento e comercialização, além de consultoria sobre geração de energia a partir de recursos naturais. (www.ufpa.br/poema) * O Centro Universitário São Camilo (SP), através de seu Departamento de Nutrição, desenvolve o programa Attende, que faz consultoria na área de nutrição às micro e pequenas empresas; realiza curso de capacitação de ajudantes de cozinha com técnicas de higiene e educação culinária, além de avaliação nutricional de crianças que são atendidas pela Clínica da São Camilo. (www.scamilo.edu.br) * A Universidade Estadual Paulista, através de sua Pró- Reitoria de Extensão, promove a inclusão social através de programas de alfabetização de jovens e adultos, tanto da comunidade interna quanto externa. Capacita professores da rede pública. Atende também a jovens portadores de deficiência auditiva ou visual, dependentes de drogas, catadores de lixo, etc. (www.unesp.br/proex) * A Universidade Federal de São Carlos, através do Departamento de Engenharia de Produção, alia a Prefeitura Municipal aos pequenos produtores de laranja, ao introduzir suco natural de laranja na merenda das escolas e creches públicas da cidade de Bebedouro (SP). São 8 mil crianças atendidas diariamente, envolvendo 22 pequenos citricultores e uma instalação industrial baseada no próprio município. A universidade assessora a prefeitura municipal na utilização de verbas disponíveis e organização e orientação aos pequenos produtores. (www.dep.ufscar.br) * A Unitrabalho (Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho) atua, no âmbito do seu Programa de Economia Solidária, fomentando a criação de incubadoras de empreendimentos solidários nas universidades agregadas à rede, e estimulando a consolidação das incubadoras existentes e sua integração aos núcleos das respectivas universidades. (www.unitrabalho.org.br) * A intervenção da Incubadora de Empreendimentos Solidários da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) na fábrica de doces Matuto na Praça fomenta o desenvolvimento sustentável no povoado de Canastra, localizado no município de Ibateguara (AL). (www.ufal.br) * A partir de um projeto premiado de produção de leite de soja por vaca mecânica, a Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA), da Unicamp, articulou um programa para fornecer diariamente até 20 mil lanches para crianças da rede pública de ensino de Campinas. O leite é desodorizado e pode ser aromatizado com sabores de frutas, caramelo, chocolate, tofe, coco e nozes. O resíduo do esmagamento da soja é utilizado como matéria-prima para a fabricação de um pão enriquecido na padaria experimental da própria faculdade. A prefeitura recebe diariamente os kits compostos de um pãozinho e um refresco à base de soja de 200 ml para serem distribuídos para as crianças da rede pública das áreas mais carentes. (www.fea.unicamp.br) * A Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (USP), localizada em Piracicaba (SP), através de seu departamento de Agroindústria, Alimentos e Nutrição desenvolve, desde o final de 2002, um projeto para viabilizar o aumento da produção, o processamento e a comercialização do pescado e de mexilhões no litoral Norte de São Paulo, de maneira a consolidar a atividade como fonte de renda e fixação do pescador na região. (www.esalq.usp.br) * A Universidade Solidária (Unisol) foi criada em 1995 pelo Conselho da Comunidade Solidária. Tendo o tema da segurança alimentar e nutricional como uma de suas principais preocupações, a Unisol mobiliza equipes de universitários para desenvolver atividades comunitárias em municípios pobres do Brasil. Nesses oito anos de atuação, envolveu cerca de 16 mil estudantes de 191 instituições de ensino superior, públicas e privadas, em aproximadamente mil municípios brasileiros. (www.unisol.org.br) * O Instituto de Genética e Bioquímica da Universidade Federal de Uberlândia desenvolve uma pesquisa aplicada, que ficou conhecida como Projeto das Plantas Supervitaminadas, com o objetivo de obter plantas com alto teor vitamínico através de melhoramento genético clássico. Procura-se também adaptar, ao solo mineiro, plantas da região amazônica ricas em vitaminas, tais como o yacón, o camucamu e a moringa. (www.ufu.br) * A Facef, IES ligada à prefeitura de Franca (SP), estabelece parcerias com associações, órgãos públicos e sindicatos, viabilizando o desenvolvimento de importantes programas no âmbito da segurança alimentar: pesquisa de preço nos supermercados; projeto de desenvolvimento comunitário, programa Primeiro Emprego, Programa Menor Aprendiz etc. (www.facef.br) * A Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em parceria com a Universidade Federal Fluminense e o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), criou o Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional, em janeiro de 2003, para atender à crescente demanda por pesquisas e capacitação de profissionais na área da segurança alimentar e nutricional no Brasil e no mundo. (www.alternex.com.br/cpda) * Em março de 1993, foi lançada por Betinho a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida. Cinco anos depois, como desdobramento desse movimento, constituiu-se o Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN), uma rede de organizações não-governamentais, movimentos sociais, universidades e outras instituições. Com o objetivo de promover o direito humano à alimentação, o fórum definiu, como metas, mobilizar a sociedade para o tema da segurança alimentar e nutricional, fomentar políticas públicas e atuar na capacitação de atores da sociedade civil. (Contato: burlandy@uol.com.br) * O Programa Gestão Pública e Cidadania, desenvolvido pela Fundação Getulio Varga e Fundação Ford, com apoio do BNDES, identifica, divulga e premia iniciativas inovadoras de governos estaduais, municipais e de organizações indígenas. Implantou, em 1998, o Projeto Práticas Públicas e Pobreza, direcionado para pesquisa e divulgação de práticas e sobre a pobreza. (www.inovando.fgvsp.br) * O Instituto Materno Infantil de Pernambuco (Imip) desde a década de 60 atende mulheres, crianças e adolescentes com baixo poder aquisitivo. É uma entidade não-governamental, de utilidade pública, que desenvolve ações em assistência médico- social, ensino, pesquisa e extensão comunitária. Atende pacientes do interior do estado e de toda a região. Contribui para a qualificação e formação de profissionais na área de saúde. (www.imip.org.br) * A Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares vincula de forma interativa e dinâmica as incubadoras, transferindo tecnologia e conhecimento. O projeto da rede conta com 15 universidades brasileiras. (www.unitrabalho.org.br/projetos) * Para instruir a população local e preservar o patrimônio ecológico e cultural do Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato (PI), a Fundação Museu do Homem Americano implantou cinco Núcleos de Apoio à Comunidade em pontos de concentração populacional no entorno do parque. Constituídos por escola, posto de saúde e moradia para professores, oferecem refeições, banho, e atividades de educação ambiental, saúde e horta comunitária. * Na Universidade de Passo Fundo (RS), o Centro de Pesquisa em Alimentação presta serviços na área de análise de alimentos, emitindo laudos para certificação e registro de produtos como erva-mate, refrigerantes, derivados de leite, de cereais e de carnes, águas e merenda escolar. * A Universidade Salvador lançou o Projeto de Segurança Alimentar em Messias (AL). Articulado pela rede Universidade Solidária, alunos da Unifacs treinaram merendeiras e auxiliares das escolas públicas quanto à higiene, nutrição e qualidade dos alimentos. * A Cidade do Conhecimento, projeto criado pelo Instituto de Estudos Avançados da USP, trabalha com ferramentas de educação à distância, gestão de conhecimento, gestão de projetos conjuntos e tecnologias sociais diversas, focando a relação entre universidade e escola pública, sobretudo no ensino médio. Em ambiente virtual promove-se a inclusão digital e estimula-se a fluência tecnológica nas comunidades onde atua. Este artigo baseia-se no texto do professor Walter Belik, que deu importante contribuição ao Fome Zero com a publicação "Segurança Alimentar: a contribuição das universidades" (Ethos, São Paulo). * Frei Betto é escritor, autor de "Batismo de Sangue" (Casa Amarela), entre outros livros. Coordena, com Oded Grajew, a Mobilização Social do Fome Zero.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107907
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