A economia dos corpos
18/06/2003
- Opinión
Somos o corpo que temos e temos o corpo que somos. Se
somos glutões, ansiosos, melancólicos, o corpo definha ou
estufa, refletindo a alma sombria. Se somos alegres,
comedidos e orantes, ele reluz.
Na festa do Corpo de Cristo, a Igreja celebra essa
concretude interrelacional que é a nossa corporalidade,
pela qual nos inserimos no mundo. E o Verbo se fez carne,
proclama o poema que abre o evangelho de João. E habitou
entre nós, não somente no sentido histórico, de Deus que
se manifestou no jovem de Nazaré, mas também na dimensão
da profundência mística: nosso ser é habitado pelo divino
e se diviniza quanto mais se humaniza.
Deus é a nossa vocação mais radical. Só Nele o desejo
cessa, a ansiedade se anula, a insatisfação se aplaca.
Tateamos, contudo, por labirínticas veredas que nos
distanciam de Deus quando somos muito religiosos e pouco
amorosos; contemplamos o Céu e ignoramos a Terra;
adoramos o Invisível e nos mantemos indiferentes ao
semelhante que sofre.
O Cristianismo é, por excelência, a religião da economia
dos corpos. Em sua natureza semítica não há lugar para o
dualismo platônico, que faz do corpo cárcere do espírito
e, deste, o retrato em negativo da concupiscência da
carne. No batismo, nosso corpo é lavado no sangue de
Cristo. Na eucaristia, ele se nutre do corpo de Deus. No
matrimônio, "numa só carne" os corpos se fundem no amor
que transubstancia o carinho em liturgia e a sexualidade
em fonte prazerosa de vida. Assim, a fé cristã sacraliza
a corporalidade humana, templo vivo de Deus, e repudia
tudo aquilo que a profana: opressão, exclusão,
humilhação, violência, fome etc.
Seria outro o efeito da política se ela centrasse seu
programa, não em reajustes monetaristas, mas na economia
dos corpos. Então, ela desceria do pedestal das
abstrações numéricas para encarar corpos sem pão e sem
terra; desamparados e prostituídos; desempregados e
enfermos. Corpos destituídos de direitos, de dignidade e
de beleza.
O culto ao corpo está em moda. Multiplicam-se as
academias de ginástica e de dança, onde o corpo molda-se
tonificado pelo ilusório elixir da juventude. Favorece-se
a saúde e a estética. Vigorosos e vistosos, os corpos nem
sempre adquirem mais capacidade de relação consigo, com o
outro e com Deus.
Ser capaz de escutar o próprio corpo, tratá-lo com
sabedoria, refinando seu espírito e evitando empanturrá-
lo de comidas e mágoas, bebidas e cóleras. É preciso
impedir que "a louca da casa", a imaginação, ateie fogo
em nossos sentimentos e emoções. Fazer silêncio dentro
de si. Deixar fluir a voz interior. E tratar o semelhante
como sacramento vivo. Abrir-se ao Deus que nos habita
pela graça, pela fé e por essa fascinante história da
evolução do Universo que, desde o Big Bang, culmina nesse
fruto inefável da natureza que é cada um de nós. Somos o
Universo que se contempla a si mesmo. Em cada pessoa - no
menino de rua e no sultão - o Cosmo se espelha e se
descobre harmônico e belo. Cada partícula atômica de
nossas moléculas dançarinas, que tecem as células que
estruturam o nosso corpo, foi cozida no calor de uma
estrela. Feitos de matéria estelar, somos todos filhos do
Sol, como intuíam os indígenas astecas e andinos.
O corpo de Gaia também é corpo de Cristo. A Igreja
deveria incluir entre os pecados a devastação de
florestas, a poluição do ar e dos rios, a contaminação
dos mares. Deveria clamar mais alto, não apenas em prol
das espécies animais ameaçadas de extinção, mas sobretudo
em favor da espécie mais degradada pela fome e pela
violência: a humana.
Gente é para brilhar, canta o poeta. Se em nossa
sociedade os corpos não brilham ou brilham só quando
besuntados de cosméticos, e não banhados de luz interior,
algo anda errado. A festa de Corpus Christi quer nos
fazer recordar que corpo é copo, cálice, onde se bebe o
vinho da alegria e da salvação, inserido no corpo místico
e cósmico do Cristo.
Só haverá futuro digno quando todos os corpos viverem em
comunhão, saciados da fome de pão e de beleza.
* Frei Betto é escritor, autor de "Entre todos os homens"
(Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107749
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