O espírito capitalista
16/06/2003
- Opinión
O sistema capitalista, que deita raízes na quebra da sociedade
feudal e no advento da manufatura, alavancou-se com a revolução
industrial, no século 19. Expandiu-se, acelerou a pesquisa
científica e o progresso técnico. Aumentou a produção e agravou a
desigualdade na distribuição. De seu ventre contraditório surgiu o
socialismo, que aprimorou a distribuição sem conseguir desenvolver a
produção. A onda neoliberal derrubou o socialismo europeu qual um
castelo de areia.
Hoje, o capitalismo é vitorioso para as nações da União Européia e
da América do Norte (excluindo o México). No resto do mundo, deixa
um lastro de miséria e pobreza, conflitos e mortes, salvando-se as
elites que, em seus respectivos países, gerenciam os negócios
segundo o velho receituário colonial, agora prescrito pelo FMI: tudo
para o benefício da metrópole.
Em plena globocolonização, o capitalismo é também vitorioso em
corações e mentes. Nem em todos. Há ricos, remediados e pobres que
não possuem espírito capitalista. São pessoas generosas, altruístas,
capazes de se debruçar frente ao sofrimento alheio e de estender a
mão em solidariedade a causas coletivas.
Porém, a tendência do espírito capitalista é aguçar o nosso egoísmo;
dilatar nossas ambições de consumo; ativar nossas energias
narcísicas; tornar-nos competitivos e sedentos de lucro. Criar
pessoas menos solidárias, mais insensíveis às questões sociais,
indiferentes à miséria, alheias ao drama de índios e negros,
distantes de iniciativas que visam defender os direitos dos pobres.
Moldar esse estranho ser que aceita, sem dor, a desigualdade social;
assume a cultura da glamourização do fútil; diverte-se com
entretenimentos que ridicularizam os pobres e a mulher, como são
exemplos os programas de humor na TV.
O capitalismo promove, em nossa consciência, tamanha inversão de
valores, que defeitos qualificados pelo cristianismo de "pecados
capitais" são tidos como virtudes: a avareza, o orgulho, a luxúria,
a inveja e a cobiça.
O capitalismo é irmão gêmeo do individualismo. Ao exaltar como
valores a competição, a riqueza pessoal, o acúmulo de posses,
interioriza em muitas ambições que os afastam do esforço coletivo de
conquista de direitos, para mergulhá-los na ilusão pessoal de que,
um dia, também eles, como alpinistas sociais, galgarão o pico da
fortuna e do sucesso.
A magia capitalista dissolve, pelo calor de sua sedução, todo
conceito gregário, como nação ou povo. O que há são indivíduos
atomizados, premiados pela loteria biológica por não terem nascido
entre os pobres, ou pela roda da fortuna, que os fez ascender
miraculosamente para o universo em que os sofrimentos morais são
camuflados sob o brilho da opulência.
O espírito capitalista não faz distinção de classe: inocula-se no
favelado e na empregada doméstica, no camponês e no motorista de
táxi. E a ricos, remediados e pobres induz à apropriação privada,
não apenas de bens materiais, mas também de bens simbólicos: oro
para alívio dos meus problemas e a cura de minhas doenças; voto no
candidato que melhor corresponde às minhas ambições; adoto um
comportamento que realça a minha figura e o meu prestígio.
Esse espectro de ser humano não conhece a cooperação e a gratuidade;
considera a generosidade uma humilhação; encara a pobreza insubmissa
como caso de polícia; faz da função de mando uma segunda pele; trata
os subalternos com desdém. O mundo centra-se em seu umbigo. Ainda
que não tape as orelhas ao ouvir falar em "amor ao próximo", do
outro ele se faz próximo quando estão em jogo seus interesses e
ambições. Mas prefere distância se o outro sofre, decai socialmente
ou mergulha em fracasso. Seu espelho é o da bruxa que indaga: "Há
alguém tão bem-sucedido quanto eu?" Se a resposta é positiva, então
quer conhecê-lo, adulá-lo, idolatrá-lo, tocá-lo, como a um ícone
religioso do qual se espera graças e proveitos.
Capitalista não é apenas o banqueiro, o tio Patinhas. É também o
Donald, que o inveja e se submete a seus caprichos. O mundo é para
ele um jogo de espelhos, no qual se vê projetado nas mais variadas
dimensões. Ele inveja os que estão acima dele e nutre ódio por quem
o ameaça como concorrente. Quando se faz religioso, é para ganhar o
Céu, já que a Terra lhe pertence. Dá esmolas, jamais direitos;
acende velas, nunca esperanças; prega a mudança de coração, não da
sociedade; é capaz de reconhecer Cristo na eucaristia, nunca no
rosto de quem padece fome, é sem-terra ou sem-teto.
Horroriza-nos pensar que, outrora, a sociedade praticou o
canibalismo. Quem sabe alimentar-se com a carne do semelhante, em
vez de entregá-la ao repasto dos vermes, seja mais saudável e ético
do que, hoje, excluí-lo do direito de simplesmente ser humano.
* Frei Betto é escritor, autor de "Lula, um operário na presidência"
(Casa Amarela), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107737
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