A prática dos novos valores
15/06/2003
- Opinión
Comecei na militância aos 13 anos, em 1957. Isso
significa que tenho algumas décadas de militância.
Iniciei num movimento chamado JEC - Juventude
Estudantil Católica -, que me ensinou a unir fé cristã
e luta política. O Evangelho, para mim, sempre foi uma
fonte de inspiração para a militância. Uma das grandes
descobertas da minha vida foi tomar consciência que
todos nós, cristãos, somos discípulo de um prisioneiro
político.
Há quem diga que a fé não tem nada a ver com política.
Ora, Jesus não morreu na cama, nem de desastre de
camelo numa rua de Jerusalém. Morreu sob dois processos
políticos, condenado à pena de morte na cruz. Sofreu um
processo político movido pelas autoridades judaicas da
época e, outro, movido pelas autoridades romanas.
Ser cristão é querer transformar o mundo, de modo a
resgatar o projeto original de Deus, aquilo que ele
queria para nós e consta da primeira página da Bíblia:
um paraíso na Terra. Se o paraíso não existe hoje, a
culpa é da nossa ambição, do nosso egoísmo, da nossa
opressão, da nossa desigualdade.
Portanto, descobri aos 13 anos que, ser cristão, é
lutar pela transformação das pessoas e do mundo. E não
adianta perguntar o que vem primeiro: o ovo ou a
galinha. É mudando as pessoas que mudamos o mundo; é se
mudando que a mudamos o mundo; e é mudando o mundo que
nos mudamos e mudamos os outros. Está tudo interligado.
Em 1961, aos 17 anos, fui eleito dirigente da União
Municipal de Estudantes de Belo Horizonte. Naquela
época, nós, cristãos, fazíamos aliança, na política
estudantil, com militantes comunistas - contra os
militantes da direita. Aprendi, então, que a diferença
entre um cristão e um comunista pode até existir se um
crê e o outro não, mas os dois se aproximam se vivem na
mesma bem-aventurança da fome e da sede de justiça.
Quando eu estava preso, entre meus companheiros de
cadeia, a maioria era comunista ateu. Às vezes, alguns
debatiam comigo a existência de Deus. Eu dizia: "Cara,
não creio em Deus, porque tenho certeza da existência
dele, sinto que ele é uma experiência muito forte na
minha vida. Agora, não vamos discutir isso não, pois
quando a gente chegar no céu vamos ter muito tempo para
discutir essas coisas. Agora, temos que tratar de como
mudar essa realidade aqui, porque é isso o que Deus
quer, para que a gente possa fazer dessa terra de
injustiça uma terra de justiça ou, como diz a Bíblia,
uma terra onde corra o leite e o mel".
No dia 25 de agosto de 1961, o presidente Jânio Quadros
renunciou à presidência da República. Nós, que
apoiávamos o Jânio, temíamos que o Brasil caísse nas
mãos de uma ditadura militar, o que veio a acontecer
três anos depois. Fomos para as ruas lutar pela volta
do Jânio à presidência da República. Foi a primeira vez
na minha vida que enfrentei polícia e bomba de gás
lacrimogêneo, nas ruas de Belo Horizonte.
Naquele dia, descobri duas coisas importantes para
nossa militância. Primeiro, quem entra na militância,
tem que entrar com o coração; não basta entrar com a
cabeça. Quem entra com a cabeça tem medo. Quem entra
com o coração, ama tanto a causa que defende, que
enfrenta situações de risco sem medo. E a segunda
coisa: o contrário do medo não é a coragem, é a fé.
Quanto mais fé temos, mais confiamos no caminho que
assumimos, certos de que esse é o desígnio de Deus para
nós; quanto mais nos sentimos irmãos do companheiro
Jesus, que deu a vida por essa causa de esperança e
libertação, menos medo sentimos.
Medo nós sentimos quando pensamos primeiro em nós.
Quando pensamos na causa, no movimento, no Brasil sem
miséria, sem mortalidade infantil, vale a pena correr
riscos.
Sob a ditadura militar
Em 1962, fui para o Rio de Janeiro, para ser um dos
dirigentes nacionais da Juventude Estudantil Católica.
Dos 17 aos 20 anos, andei esse Brasil todo duas vezes,
de ponta a ponta, organizando grupos de estudantes,
despertando a esperança, abrindo a visão dos jovens,
dando força para que se organizassem e entrassem na
luta.
Naquela época, acreditávamos que o Brasil ia mudar
logo, até porque o governo foi assumido por partidos
progressistas. O presidente era o João Goulart.
Achávamos que as tais reformas de estruturas iriam
acontecer logo. Mas, ficou claro uma coisa: o Brasil,
desde que foi invadido pelos portugueses, sempre foi
governado por uma elite sem nenhuma sensibilidade para
o social.
Em 2000, comemoramos 500 anos de invasão do Brasil.
Comemoramos uma história de dor e de sofrimento. Havia
cinco milhões de índios quando os portugueses chegaram
aqui; hoje, estão reduzidos a menos de 1 milhão. Os
índios brasileiros, ao contrário dos índios de outros
países da América Latina, tiveram o mérito de jamais se
deixar escravizar pelos colonizadores. Devemos ter isso
muito presente. Somos filhos de nações indígenas que
jamais o colonizador português conseguiu escravizar.
Dizimou, matou, afogou, queimou, mas não conseguiu
escravizar o índio. Tanto não conseguiu que os
portugueses tiveram que trazer da África homens e
mulheres livres, como escravos, para trabalhar na
lavoura e nas minas do Brasil. O Brasil foi o país das
Américas com o mais longo período de escravidão - 320
anos. Vieram para cá, calcula-se, cerca de 10 milhões
de africanos, dos quais 5 milhões morreram na travessia
do oceano e têm o Atlântico como túmulo.
O Brasil passou de Monarquia para a República, mas a
elite, infelizmente, ainda não mudou. Ora, em 1964, em
nome dessa elite, os militares brasileiros rasgaram a
Constituição. Deram um golpe de estado e implantaram
uma ditadura, que durou 21 anos, de 1964 a 1985.
Em 1964, eu morava numa república de estudantes, no
Rio, muito freqüentada por dirigentes estudantis.
Muitas vezes dormia lá o Betinho, que todos conheceram
da campanha da fome. Nossa república foi invadida pelo
serviço secreto da Marinha, a 6 de junho. Acordei com
uma arma na cabeça Eram quatro horas da manhã. Achei
que era um pesadelo. Virei-me de lado. Um sujeito
cutucou as minhas costas com a metralhadora. Então me
dei conta de que era realidade, e não pesadelo. Fomos
todos presos, levados para o quartel dos Fuzileiros
Navais, na Ilha das Cobras. Ao chegar lá, vi uma
montanha de livros numa sala. Livros que eles tinham
apreendido, naquela noite, na casa de vários militantes
que foram presos.
Foi a primeira vez que senti na pele o que é uma
ditadura militar. Ficamos detidos só 15 dias, a maior
parte do tempo em prisão domiciliar. Depois,
descobrimos que a luta contra a ditadura não podia se
restringir às manifestações estudantis. Tinha que ser
uma luta mais profunda, o que nos fez desencadear,
inclusive, a luta armada.
Ainda hoje, lutamos por direitos fundamentais. A nossa
luta ainda não é por direitos humanos. Explico. Às
vezes, quando viajo para fora do Brasil, me perguntam:
"Como é a luta de vocês, no Brasil, por direitos
humanos?" Eu respondo: "Falar em direitos humanos no
Brasil é luxo. Infelizmente, ainda lutamos por direitos
animais, porque isso de comer, defender-se do frio,
educar a cria, é coisa de bicho, que a maioria da
população do meu país ainda não tem assegurada pelas
estruturas políticas."
Precisamos mudar esse país. Mas tendo claro quais os
nossos métodos adequados de luta. Isso é curioso: quem
decide os nossos métodos não somos nós. É a elite que
governa o Brasil. Podemos e devemos lutar na legalidade
e na legitimidade. Devemos esgotar todas as formas de
lutas e todas as formas legítimas e legais possíveis.
Mas, quem diz, a um certo momento, que determinadas
formas de luta já não são mais possíveis? O governo e a
elite que controlam o país.
Durante muito tempo, sob a ditadura, a nossa luta no
movimento estudantil expressava-se em grandes
manifestações, passeatas, protestos. Até que a ditadura
proibiu todas as formas democráticas e legais de luta.
Diante de uma ditadura que nos reprimia com armas,
tanques, metralhadoras, fuzis, prisão, tortura, morte e
desaparecimento de companheiros, não nos restou outra
alternativa senão a resistência armada.
O meu "crime" foi fazer contrabando de genteŠ Por isso
fui preso em 1969. Estive um mês detido no Rio Grande
do Sul; depois, fui levado para São Paulo. Ali fiquei
dois anos preso, sem julgamento. Não tinha idéia se ia
sair vivo da prisão, nem se ia ficar dois, três, dez ou
quinze anos. Dois anos depois, fui condenado a quatro
anos de prisão. Meu advogado fez o recurso, pedindo a
redução da pena. Ela foi reduzida, de quatro para dois
anos, faltando um mês para eu completar os quatro anos
de cadeia. De modo que tenho dois anos de crédito com a
liberdadeŠ
As lições da prisão
A prisão foi uma grande escola para todos nós que
sobrevivemos a ela. Infelizmente muitos companheiros
morreram na prisão, como frei Tito de Alencar Lima que,
aos 24 anos, foi torturado até à loucura. A prisão é um
sofrimento, mas tem duas grandes vantagens. Primeiro,
ali pode-se falar de tudo, porque não há o perigo de
ser preso. Segundo, aprende-se a deixar de ser egoísta.
Nosso grande inimigo não é a elite, o capitalista ou o
opressor. O grande inimigo está dentro de nós. É o
homem velho ou a mulher velha que carregamos no
coração. Esse é o grande inimigo, e que, muitas vezes,
se disfarça de combatente, de militante, de
revolucionário. Enche a boca de palavras novas mas, no
fundo, é movido pela vaidade, pela pretensão, pela
vontade de estar por cima do outro, pela ambição.
Isso é uma das coisas que me doem quando olho para
trás: vejo companheiros que foram para a prisão
comigo, assumiram riscos de vida na luta aqui fora,
provocava inveja a firmeza que demonstravam; diante
deles eu me perguntava: "Saindo da cadeia, serei ao
menos 10% militante como eles?" Mas esses companheiros,
ao sairem, foram cooptados, engolidos pelo sistema, não
souberam cultivar neles os valor do homem novo e da
mulher nova. Deixaram-se levar pela ambição, pela
maracutaia da política, pelo uso da mentira para
conquistar posição, por um poderzinho de sindicato, de
movimento popular, pela convicção de ser melhor do que
o coletivo ou, também, pelo excesso de militância.
Quem se gaba: "Sou um super militante, participo do
MST, da CUT, dos movimentos populares, da pastoral,
estou em todas". Eu respondo: "Não, você não é
militante, você é um militonto". Militante que não ri,
não faz festa, não tira férias, não namora, não se
diverteŠ comece a desconfiar dele, porque vai dar
zebra. Como dizia o companheiro Che, não se pode ser
apenas duro, perdendo a ternura. Por quê? Porque como
temos que parar para dormir, descansar a cabeça, temos
também que parar para nos divertir, celebrar, resgatar
as energias. Caso contrário, nossa saúde psíquica vai
para o brejo. Começamos a ficar duro com os
companheiros, agindo como militante fariseu, e não como
militante sadio. O militante fariseu é aquele que é
duro com os outros, mas não consigo mesmo; o sadio é
tolerante com os outros e exigente consigo. Mas, essa
exigência tem que apoiar-se na festa e na fé. Isso é
fundamental.
A repressão da ditadura conseguiu acabar com todos os
movimentos armados. Por que nos derrotou? Onde
falhamos? Tínhamos quase tudo: coragem - vários
companheiros deram a vida na luta -, teorias, armas,
dinheiro das expropriações bancárias etc. Faltou um
detalhe: apoio popular. Não tínhamos o principal e, por
isso, a ditadura conseguiu criar um fosso entre nós e o
povo.
Quando começamos a achar que somos a vanguarda, que o
povo não sabe, é ignorante, atrasadoŠ sem querer
começamos a fazer o jogo da direita, porque tudo o que
ela quer é que a vanguarda fique separada da massa. A
minha geração sentiu isso na resistência armada. Ora,
um revolucionário assume todas as dimensões importantes
para o povo, e uma dessas dimensões é a religiosidade.
Fico muito desconfiado de companheiros que fazem um
cursinho por aí, aprendem meia dúzia de teorias
revolucionárias e já saem torcendo o nariz para a fé do
povo. Isso é um perigo. Lênin, que não era médico, mas
entendia de revolucionário, já tinha diagnosticado
isso. Chamou de esquerdismo, "a doença infantil do
comunismo". Há que estar atento a esse sintoma.
Temos que dar passos no ritmo do povo, para ajudá-lo a
caminhar no ritmo das mudanças sociais. Se a minha avó
e a minha mãe são agricultoras semi-analfabetas, e não
estão entendendo a conjuntura, o problema não é delas,
o problema é meu. Como militante tenho que encontrar
uma pedagogia, de modo que elas venham a entender a
nossa língua. Que o povo não entenda certas coisas,
isso não é problema, é resultado do sistema de
dominação em que vivemos.
O trabalho com o povo
Saí da prisão em 1973 e fui viver em uma favela, em
Vitória, no Espírito Santo. Vivi ali cinco anos. Ao
chegar lá torci o nariz, porque domingo, dia em que eu
podia encontrar os vizinhos, ficava todo mundo
trancando dentro de casa, vendo programas de auditório.
E eu dizia: "Como esse povo é alienado, passa o domingo
vendo bobagem na TV" Até descobrir que o alienado era
eu, que não entendia por que que o povo ficado ligado
na TV. Descobri que o povo vê programas de
entretenimento porque é muito pobre e não tem dinheiro
para passear no domingo, não tem espaço para ir no
teatro. A única maneira de distrair a cabeça e não
pensar no sufoco da vida é, no fim de semana, sentar
diante da TV e ficar vendo as bobagens.
Como é importante conhecer a cabeça do povo e não achar
que a nossa cabeça entende tudo, porque pensamos
diferente. Se não tomamos cuidado, acabamos como aquele
vigário que resolveu tirar as imagens da igreja e pôs a
de São Sebastião na garagem da casa paroquial. No
domingo, a igreja estava vazia. Todo mundo se reuniu na
garagem da casa paroquial. Ou seja, ele nem perguntou
para o povo se queria ou não que tirasse a imagem.
Achou que sabia o que era bom para o povo e quebrou a
cara, porque o povo tem uma relação com os santos que é
diferente da relação do vigário.
Após anos na favela, fui para São Paulo, onde trabalhei
mais de 20 anos, sobretudo no ABC. Participei de todas
aquelas greves dos metalúrgicos. O que aprendi ao longo
daqueles anos? Aprendi algumas coisas importantes. Só
vamos construir a nova sociedade se começarmos agora, e
começarmos por cada um de nós. Ninguém vai poder
construir a sociedade nova deixando os nossos defeitos
virarem tiririca na sociedade velha. Trabalhei muitos
anos nos países socialistas. Estive na Rússia, na
China, em Cuba inúmeras vezes, na Nicarágua, na
Tchecoslováquia, na Polônia e na Alemanha Oriental,
antes da queda do muro de Berlim. Se me perguntassem:
"Por que o socialismo fracassou na Europa e caiu o muro
de Berlim?" eu responderia: "Porque quiseram construir
uma casa nova com material velho." Não dá. Se queremos
construir uma sociedade nova, temos que fazer esforço,
desde agora, para sermos homens e mulheres novos. Em
nome da casa nova não podemos agir de uma maneira
velha. Podem ter certeza, não dá para construir casa
nova com material velho. Bate um pé de vento da
história e vem tudo abaixo, como o Muro de Berlim foi
abaixo e nos desmoralizou, porque defendemos o
socialismo como uma etapa superior de sociedade.
Outro fator que explica o fracasso do socialismo no
Leste europeu: o ser humano tem duas grandes fomes - a
de pão e a de beleza. Beleza, é tudo isso que dá
sentido à vida, tudo isso que não é material, mas é
simbólico, essencial. Fome de beleza é a fome de amor,
de festa, de alegria, de fé; é a fome de amizade e de
companheirismo. A primeira fome o socialismo respondeu
- a de pão, malgrado as dificuldades. Mas,
infelizmente, não respondeu à segunda, a fome de
beleza. Por quê? Porque era tudo de cima para baixo. O
povo não tinha direito de sonhar como gostaria. Então,
a cabeça do povo começou a sonhar com o sonho do
capitalismo, como se fosse melhor, e o povo acabou indo
para a rua, para derrubar o socialismo, para virar
capitalismo. Hoje aquele povo sabe que vive numa
situação pior do que no socialismo. Mas, agora é tarde.
Para não cometer os mesmos erros no futuro e atuar bem
no presente, temos que conhecer a história do passado
e ousar assumir aqueles valores que criam condições de
construir o homem e a mulher novos. Hoje, a ética é um
imperativo revolucionário.
* Frei Betto é escritor e autor, em parceria com
Domenico de Masi e José Ernesto Bologna, de "Diálogos
Criativos" (DeLeitura), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107714
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