Mestres espirituais
02/06/2003
- Opinión
Por que o Dalai Lama exerce tanto fascínio? Como tantos
mestres espirituais, ele parece encarnar tudo aquilo que
não somos e gostaríamos de ser. Transmite-nos uma imagem
de paz, num mundo repleto de conflitos; de coerência,
numa sociedade que não prima pela ética; de profundidade
espiritual, numa civilização que se deixa hipnotizar pela
superficialidade do consumismo.
Não somos capazes de imaginar o Dalai Lama gritando com
um de seus monges. No entanto, erguemos a voz irritados
com familiares e subalternos. Não imaginamos o mestre
espiritual do Tibete sonegando o salário da cozinheira.
No entanto, custa-nos pagar aos empregados um valor que,
um dia, os permita deixar de viver em função da
sobrevivência imediata. Impossível supor que o Dalai Lama
fique irado com uma crítica pessoal. No entanto, sentimos
a nossa auto-estima ferida quando temos certeza de que as
nossas fraquezas são percebidas pelos outros.
Por que esse fascínio que os mestres espirituais exercem
sobre nós? A resposta não reside neles. Reside em nós.
Tanto mais os admiramos, quanto mais temos consciência de
nossas dificuldades para abraçar as mesmas sendas.
O que nos atrai em Jesus, Buda ou Francisco de Assis é
que foram capazes de uma opção radical pela felicidade.
Eis um bem que todos buscamos. Porém, eles nos sinalizam
que a felicidade é uma lagoa paradisíaca escondida dentro
de uma floresta, à qual se tem acesso por trilhas
inóspitas. É a terceira margem do rio, a que se refere o
conto de Guimarães Rosa. Sonhamos com a lagoa, mas
tememos empreender a caminhada. Não queremos perder de
vista a primeira margem do rio. O resultado é essa
tentativa sisifista de procurar conciliar o
inconciliável; o apego aos bens materiais e o
desprendimento espiritual; o horror aos pobres e o amor
ao próximo; o medo de mudanças e a sedução da utopia.
As vias do neoliberalismo são contrárias àquelas dos
mestres espirituais. Estes acreditam que a felicidade
situa-se no mais íntimo de nós, nos bens infinitos, na
experiência incondicional do amor. O sistema, contudo,
apregoa que a felicidade reside nos bens finitos, na
posse e na acumulação, e é o resultado da soma dos
prazeres. É o que a publicidade sugere: vista esta roupa,
coma naquela lanchonete, ande em tal carro, use este
cartão de crédito... e você será feliz!
O valor dos mestres espirituais emana da vida interior.
São pessoas que dispensam o olhar alheio. Fama e fortuna
pouco lhes importam. Preferem uma hora de meditação a
três de aplausos. São capazes de empatia com os anônimos.
Sedentos de justiça, jamais se conformam com o mundo tal
como ele se apresenta. Exalam compaixão, tolerância e
esperança.
São militantes de causas aparentemente impossíveis, pelas
quais dão a vida. Não dialogam com a tentação, nem se
esforçam por manter o precário equilíbrio de quem insiste
em ter uma perna na vaidade e outra no desprendimento;
uma na sensualidade e outra na interioridade; uma na
indiferença à desigualdade social e outra na utopia.
A cultura consumista adota como mandamentos os sete
pecados capitais: a gula, a luxúria, a avareza, a ira, a
inveja, a preguiça e o orgulho. A vida espiritual trafega
pelo caminho inverso: desapego aos apetites, pudor,
respeito ao outro, recato, serviço, gratuidade. Num mundo
em que a competitividade é exaltada como valor supremo,
como esperar que as pessoas pratiquem a solidariedade?
Os mestres espirituais só interessam ao consumismo na
medida em que servem de pretexto para vender algum
produto - seja a oposição ao regime chinês ou as
mercadorias veiculadas por quem patrocina o espaço
televisivo.
A vida espiritual não é um jogo de emoções que nos faz
experimentar a vertigem do transcendente, mas uma atitude
concreta e efetiva frente ao próximo, de modo a vencermos
o individualismo para criar vínculos de comunhão. O
egoísmo é uma tendência natural em todos nós. O altruísmo
é uma cultura.
O critério evangélico para se saber quem está ou não no
caminho ensinado por Jesus é simples: aqueles que são
capazes de identificá-lo na face dos excluídos, e lutam
para que todos tenham vida e vida em plenitude. A vida
espiritual não é um luxo narcísico. Ela é o reflexo, em
nós, do amor que somos capazes de dar aos outros.
* Frei Betto é escritor, autor do romance sobre Jesus
"Entre todos os homens" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107618
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