Era uma vez o neoliberalismo?
08/05/2003
- Opinión
O neoliberalismo buscou se impor, inicialmente, como a melhor
alternativa, para um mundo que parecia ter esgotado as outras.
Esgotava-se o mais acentuado ciclo de expansão da economia
mundial, marcado pelo segundo pós-guerra, buscava-se alternativas
e o neoliberalismo se inseriu nesse vazio
A que o neoliberalismo pretendia ser alternativa?
Ao esgotamento do período de maior crescimento da economia
mundial. Haviam se combinado aí a mais acelerada fase de expansão
econômica das grandes potências capitalistas – a ponto que Eric
Hobsbawn o chama de "era de ouro do capitalismo" -, a expansão de
países da periferia capitalista, com vários deles desenvolvendo
suas versões da industrialização – e com o fortalecimento das
economias dos países do então chamado "campo socialista". Essa
convergência produziu, como resultado, um crescimento global da
economia como nunca havia ocorrido, entre os anos 40 e os anos 70
do século XX.
Essas vertentes tinham algo em comum: a crítica do
liberalismo. Todas tinham, de alguma forma, nascido ou se
fortalecido a partir da crise de 1929. Esta, atribuída ao
liberalismo pela sua confiança na capacidade dos mecanismos de
mercado para recompor as crises econômicas, tinha levado os
governos a assistir, quase que passivamente, à crise, que assim
acabou alastrando-se e gerando aquela que até aqui é a maior que o
capitalismo enfrentou. As reações foram de distinto tipo, mas
todas tendo em comum a condenação da confiança no "livre jogo do
mercADO"
As teorias keynesianas orientaram novas formas de ação
anticíclica do Estado – isto é, de ação preventiva em relação a
novas crises - que continham no seu bojo o chamado "Estado de bem
estar social". Essas teorias foram um fator decisivo na expansão
das economias das potências capitalistas no segundo pós-guerra, na
contramão do liberalismo.
A industrialização de regiões da periferia capitalista – o
então chamado "terceiro mundo" – foi igualmente feito com forte
indução do Estado na economia, apoiado na teoria da
"industrialização substitutiva de importações". Essa política
surgiu como crítica da "teoria do comércio internacional" – teoria
liberal -, que considerava que cada país e região do mundo deveria
se dedicar àquilo que chamava de "vantagens comparativas", o que
condenava os que chegavam posteriormente ao mercado internacional
a ficar permanente presos à produção de produtos primários que,
trocados pelos industrializados, consolidariam eternamente e
aprofundariam a divisão ente centro e periferia do capitalismo,
entre potências industriais e países agrícolas ou minerais.
As economias centralmente planificadas que caracterizaram os
países socialistas eram o contraponto mais radical a economias de
mercado, mais ainda daquelas inspiradas pelo liberalismo.
O ciclo global de crescimento econômico do segundo pós-guerra
se construiu assim sobre a crítica, mais ou menos radical, do
liberalismo. Foi quando essas três vertentes começaram a dar
sinais de esgotamento que o liberalismo se lançou como alternativa
hegemônica de novo, depois de que a crise de 1929 parecia condena-
la a um cadáver irrecuperável. Durante esse longo período de
recesso, os liberais se mantiveram como crítica marginal,
conservadora, às tendências econômicas e políticas dominantes. Até
mesmo os partidos de direita se comprometiam com o keynesianismo,
a ponto de que, no começo dos anos 70, o presidente republicano
dos EUA Richard Nixon declarou: "Somos todos keynesianos",
refletindo o poder hegemônico da proposta reguladora do Estado
capitalista. No plano concreto essa hegemonia se refletia também
em que o Estado de bem estar na Europa – em países como a
Alemanha, a Itália, a França – foi construído por partidos
conservadores – democrata-cristãos, entre outros.
Por detrás desse processo havia o ciclo longo expansivo do
capitalismo, que se esgotou durante a década de 70, com a data
convencionalmente estabelecida pela crise do petróleo de 1973,
embora esta tenha sido apenas o detonador de um processo que já
havia perdido fôlego nos anos anteriores. O diagnóstico
neoliberal, em relação às três vertentes terem entra em crise, foi
a de que a regulamentação representaria um desincentivo ao capital
e que a livre circulação seria a alternativa para a retomada do
desenvolvimento, tanto no centro quanto na periferia do
capitalismo. Quanto às economias centralmente planificadas, elas
estariam condenadas inevitavelmente ao fracasso, por não contar
com o dinamismo que somente o livre mercado poderia promover.
É nesse marco que surgem as propostas liberais - elas mesmas
se autoproclamando como neoliberais - pela retomada atualizada das
teses clássicas do pensamento liberal. A economia mundial foi
transformada, em graus diferentes conforme a região e o país,
pelas políticas neoliberais, que promoveram a hegemonia da
ideologia de mercado, identificada com o dinamismo e a "liberdade
econômica".
Como políticas concretas, o neoliberalismo se iniciou na
América Latina - mais precisamente na Bolívia e no Chile de
Pinochet. O que era a alternativa neoliberal nesses países? O
combate à inflação era colocado como o objetivo fundamental, como
condição prévia indispensável à retomada do crescimento econômico,
à modernização tecnológica e à distribuição de renda. A luta
contra a inflação era a forma específica de lutar contra a
presença do Estado, considerando que a inflação é promovida pelo
Estado, fabricando moeda para cobrir seus déficits, o que levaria
igualmente à redução dos gastos públicos e, com estas, a retração
das prestações de serviços pelo Estado particularmente aquelas
dirigidas às camadas mais pobres da população, justamente as que
estavam em piores condições de disputar os recursos reduzidos nas
mãos dos governos.
Foi em seguida que, com a eleição de Margareth Thatcher na
Inglaterra e de Ronald Reagan nos EUA, o neoliberalismo foi
assumido como modelo hegemônico pelo capitalismo em escala
mundial. Generalizaram-se, contando com o FMI, o Banco Mundial e a
Organização Mundial de Comércio, as políticas de liberalização
econômica e financeira, com desregulamentação, privatização,
abertura das economias para o mercado mundial, precarização das
relações de trabalho, retração da presença do Estado na economia.
Quando o neoliberalismo foi perdendo impulso, suas políticas,
inicialmente consideradas as melhores, passaram a ser consideradas
as únicas, conforme o receituário do Consenso de Washington. Não
haveria alternativas, como se se tratasse de um purgante,
necessário, que provocaria danos no organismo, mas as células
sobreviventes se sentiriam melhor.
Duas décadas depois, o balanço do neoliberalismo não
corresponde às suas promessas: a economia – nos vários países e na
economia mundial no seu conjunto – não retomou a expansão, a
distribuição de renda no mundo piorou, o desemprego aumentou
sensivelmente, as economias nacionais ficaram sensivelmente mais
fragilizadas, as crises financeiras se sucederam. O neoliberalismo
se apoiou em grande parte no ciclo expansivo da economia norte-
americana, que funcionou como locomotiva da economia mundial,
pretendendo assumir – sob a forma de uma "nova economia"- uma
dinâmica de crescimento permanente -, até que esse ciclo se
esgotou em 2001.
Depois dos ciclos de crise regional, começados com a crise
mexicana em 1994, seguida pela crise do sudeste asiático em 1997,
pela russa em 1998 e pela brasileira em 1999, configurou-se um
quadro de esgotamento do neoliberalismo. Na América Latina,
enquanto inicialmente os presidentes se elegiam e se reelegiam
conforme adotavam as políticas neoliberais – como aconteceu com o
Carlos Menem, com Alberto Fujimori e com FHC -, a partir do final
da virada do século passou a acontecer o contrário. Fernando de la
Rúa na Argentina, Jorge Battle no Uruguai, Alejandro Torres no
Perú, Sanchez de Losada na Bolívia, Vicente Fox no México –
passaram a ter um destino oposto: não mudavam o modelo econômico e
fracassavam rapidamente.
É a esse quadro de crise econômica e social – que ao mesmo
tempo debilitou os sistemas políticos – que o neoliberalismo
entrou também em crise ideológica, com os valores mercantis sendo
questionados de forma crescente, até mesmo por organismos como o
Banco Mundial e por ex-teóricos do neoliberalismo, que passaram a
reivindicar ações complementares por parte do Estado e outras
formas compensatórias para remediar os danos sociais causados
pelas políticas mercantis.
Os movimentos contra a globalização neoliberal, a partir de
Seattle consolidaram esse esgotamento e a passagem dos que pregam
ainda as políticas neoliberais a uma posição defensiva, enquanto
os Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre questionavam tanto a
efetividade dessas políticas, quanto sua pretensão a ser as únicas
viáveis.
O esgotamento – teórico e prático – do neoliberalismo não
representa sua morte. Os mecanismos de mercado que ele multiplicou
seguem tão ou mais fortes do que antes, condicionando e cooptando
a governos e partidos, a forças sociais e a intelectuais. A luta
contra o mercantilização do mundo é a verdadeira luta contra o
neoliberalismo, pela construção de uma sociedade democrática em
todas suas dimensões, o que significa necessariamente de uma
sociedade governada conscientemente pelos homens e não pelo
mercado.
Que tipo de sociedade sucederá ao neoliberalismo é o grande
tema a enfrentar. O neoliberalismo é um modelo hegemônico – não
apenas uma política econômica, mas uma concepção da política, um
conjunto de valores mercantis e uma visão das relações sociais –
dentro do capitalismo. Sua substituição não significa
necessariamente uma ruptura com o capitalismo. Ela pode se dar
pela superação do neoliberalismo a favor de formas de regulação da
livre circulação do capital, seja na lógica do grande capital,
seja na sua contramão. Isto vai depender das condições em que se
der essa superação, com que relação de forças, levada a cabo por
que coalizão social e política.
O próprio grande capital pode retomar formas de regulação, de
proteção, de indução estatal na economia, seja alegando
necessidades de fato, seja retomando concepções mais
intervencionistas do Estado, com críticas às limitações do
mercado. Esta visão está representada pelo mega-especulador
Georges Soros, que afirma que o mercado seria bom para produzir um
certo tipo de bens, mas não os bens que chama de públicos ou
sociais, que deveriam ser de responsabilidade de políticas
estatais. Trata-se de um reconhecimento de que o mercado induz à
acumulação privada e não ao atendimento das necessidades da grande
maioria da população. Ou pode simplesmente, pela via dos fatos,
violar suas próprias afirmações e desenvolver políticas
protecionistas – como as do governo Bush nos Estados Unidos -,
alegando necessidades de segurança ou de defesa de setores da
economia ou mesmo do nível de emprego.
Ou o posneoliberalismo pode ser conquistado na contramão da
dinâmica do grande capital, impondo políticas de
desmercantilização, fundadas na necessidade de atendimento da
massa da população. Neste caso, mesmo sem romper ainda com os
limites do capitalismo, se trata de introduzir medidas
contraditórias com a lógica do grande capital, que mais cedo ou
mais tarde levarão ou a essa ruptura ou a um retrocesso, pela
incompatibilidade da convivência de duas lógicas contraditórias.
Qual delas prevalecerá é uma questão aberta, que será
decidida pelos homens, arrastados pela lógica perversa da
acumulação de capital ou conscientes e organizados para retomar o
poder de fazer sua própria história.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107589
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