Ser de esquerda
15/05/2003
- Opinión
Desde que a palavra esquerda foi utilizada para designa-la como
corrente política, a esquerda esteve sempre vinculada à idéia de
justiça social, de igualdade, de solidariedade, de liberdade e de
democracia. Múltiplas variantes – mais redutivas ou mais diluídas –
buscaram dar conta do que significaria ser de esquerda, todas elas
vinculadas ao projeto de construção de um outro tipo de sociedade.
Assim a esquerda ganhou projeção na crítica e na rejeição do
capitalismo, considerado responsável pela exploração, pela opressão e
pela alienação. Por oposição, o socialismo assumiu sempre um caráter
libertário, de luta por uma sociedade sem classes e sem Estado, sem
dominação e sem exploração, em que os homens conquistassem a
capacidade de ser donos do seu próprio destino.
O que significaria hoje ser de esquerda num país como o Brasil? A
maior brutalidade que vivemos no nosso país é a desigualdade, já que
somos sistematicamente eleitos e reeleitos pela ONU como o país mais
injusto do mundo, isto é, aquele em que os bens estão pior
repartidos. Como o Brasil é a 11a. economia do mundo em termos de
produto bruto, não se trata de carência absoluta de bens, mas de sua
péssima distribuição. Por isso, as utopias de esquerda no Brasil de
hoje têm que estar intimamente vinculadas à construção de uma
sociedade justa, de universalização de direitos, em que o trabalho
esteja assegurado para todos, em condições básicas de dignidade nas
condições de trabalho e na remuneração, em que todos possam viver do
seu trabalho e em que ninguém viva do trabalho alheio.
Três camadas sucessivas de formas de organização da sociedade
produziram e reproduziram sucessivamente as desigualdades que se
acumularam e persistem até hoje, reforçando-se umas às outras. A
primeira vem da colonização do Brasil e do seu sustento no trabalho
escravo durante séculos. Produziu-se a concentração da terra, a
exclusão dos trabalhadores rurais do acesso às condições mínimas de
sobrevivência, mesmo depois do término formal da escravidão.
Resgatar os direitos básicos da população rural significa portanto,
antes de tudo, a realização de uma reforma agrária que abranja a
totalidade do país. É parte integrante da utopia da igualdade no
Brasil de hoje a extensão e consolidação dos direitos ao trabalho, à
educação, à saúde, à habitação, à afirmação das identidades culturais
das populações rurais do país.
A segunda camada de desigualdades foi produzida pela forma como se
deu a industrialização, como a produção basicamente voltada para a
exportação e para o consumo suntuário, às expensas das necessidades
básicas do conjunto da população. Um mercado concentrado demanda
bens de luxo e a produção, por sua vez, se volta para quem dispõe de
capacidade de consumo. Gerou-se assim um círculo vicioso que
alimenta a concentração de renda e a exclusão da maioria da população
dos bens indispensáveis a seu bem estar. Lutar pela igualdade
significa, neste caso, lutar pela democratização da produção, da
comercialização e do consumo.
Mais recentemente somaram-se as desigualdades produzidas pela
financeirização da economia, fundada nas taxas de juros reais mais
altas do mundo. O Estado, viu deteriorar-se a sua prestação de
serviços para a massa da população, enquanto os recursos básicos
arrecadados pelos governos foram drenados para a esfera financeira, o
capital produtivo migrava para a especulação, a massa dos
trabalhadores e das pequenas e médias empresas se endividava. Este
processo se estendeu e se aprofundou de tal forma que definir-se de
esquerda – um governo, um partido, uma pessoa – é antes de tudo lutar
contra a hegemonia do capital financeiro sobre a economia e todos os
seus efeitos perversos sobre o conjunto da sociedade brasileira. É
lutar pelo triunfo do mundo da produção e do trabalho sobre o mundo
da especulação.
A utopia da igualdade passa, hoje, portanto, em primeiro lugar, pela
luta contra as raízes dos privilégios: a propriedade improdutiva no
campo, as grandes corporações industriais e comerciais voltadas
privilegiadamente para a exportação e o consumo das elites, e o
capital especulativo. A construção de um Brasil justo e solidário
começa por ai.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107543
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