Mística e política

01/11/2003
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Predomina entre os cristãos a idéia de que a mística nada tem a ver com a política. Seriam como dois elementos químicos que se repelem. Basta observar como vivem uns e outros: os místicos, trancados em suas estufas contemplativas, alheios ao índice da inflação, absorvidos em seus exercícios ascéticos, indiferentes às discussões políticas que se travam em volta deles. Os políticos, consumidos por infindáveis reuniões, correndo contra o relógio da história, mergulhados no redemoinho de contatos, de análises e de decisões que saturam o tempo e não abrem espaço sequer ao convívio familiar, quanto mais à meditação e à oração! É verdade: uma certa concepção da mística é incompatível com certo modo de fazer política. A vida religiosa está imbuída deste conceito de que contemplativo é quem dá as costas ao mundo para postar-se diante de Deus. Todavia, não é bem no Evangelho que se encontram as raízes desse modo de testemunhar o absoluto de Deus, mas sim em antigas religiões pré-cristãs - corno o masdeísmo - e nas escolas filosóficas gregas e romanas, que proclamavam a dualidade entre alma e corpo, natural e sobrenatural, sagrado e profano. O monaquismo, que nasce no século IV como afirmação da fidelidade evangélica perante o desfibramento da emergente Igreja constantiniana (leiam-se as cartas de são Jerônimo), não teve alternativa histórica senão a de nutrir-se na ideologia em voga: o platonismo. A idéia de uma natureza humana conflitantemente dividida entre carne e espírito representou, para a espiritualidade cristã, o que a cosmologia de Ptolomeu significou antes das teorias científicas de Copérnico e Galileu - quem se dedica às coisas do mundo, à polis, arrisca-se à perdição. A santidade era concebida como negação da matéria, mortificação (morte) da carne, renúncia da vontade própria, fruição de êxtase espiritual. Nessa ótica atomística de se compreender a relação da pessoa com a divindade, havia acentuada dose de solipsismo: o cuidado do aprimoramento espiritual do eu sobrepunha-se à exigência evangélica de amor aos outros. Como nem mesmo a discussão em torno do sexo dos anjos deixa de ter seus reflexos políticos, tal concepção pagã da mística - que conduziu por desvios a espiritualidade cristã - serviu de matriz às utopias políticas da República de Platão, das Cidades de santo Agostinho, das propostas de Thomas Morus e de Campanella. Na Igreja, o equívoco alcança o seu ponto alto na Idade Média, confinado entre as fronteiras políticas do poder eclesiástico e na idéia de que o Reino de Deus se estabelecera neste mundo. É interessante constatar que os grandes místicos foram simultaneamente pessoas mergulhadas na efervescência política de sua época: Francisco de Assis questionou o capitalismo nascente (como bem o demonstra a magistral obra de Leonardo Boff, São Francisco, Ternura e Vigor); Tomás de Aquino defendeu, em O Regime dos Príncipes, o direito à insurreição contra a tirania; Catarina de Sena, analfabeta, interpelou o papado; Teresa de Ávila, "mulher inquieta, errante, desobediente e contumaz" - como a qualificou Dom Felipe Sega, núncio papal na Espanha, em 1578 - revolucionou, com são João da Cruz, a espiritualidade cristã. Pena que, hoje, quando há tantos místicos próximos da política, a recíproca não seja verdadeira. * Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de "Mística e Espiritualidade" (Rocco), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107293
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