O recuo de antão
16/01/2003
- Opinión
No dia 17 de janeiro festeja-se um dos meus santos prediletos: Antão
Nasceu no Egito no ano 251. Seus pais eram ricos e o educaram na fé cristã.
Órfão na adolescência, reservou à sua irmã parte da herança e doou o
restante aos pobres. Foi morar isolado, como eremita, na periferia de uma
aldeia. Incomodado pela atração que seu estilo de vida causava nos
peregrinos, internou-se no deserto. Mais tarde, atravessou o rio Nilo e
passou a habitar o cume de uma montanha, próxima a Fauim, onde viveu até os
105 anos
A vida de Antão coincide com o momento em que refluía a perseguição aos
cristãos. A conversão do imperador Constantino, no início do século IV,
marcou uma virada de página na história: os bispos trocaram os cárceres e a
clandestinidade por palácios e títulos de nobreza; os perseguidos passaram
a perseguir os "hereges" que não rezavam pelo mesmo catecismo; o Estado
assumiu a tutela da Igreja em troca da legitimidade sagrada com que se
revestia a autoridade civil incensada pelo clero
Antão, desgostoso com essa nova conjuntura, tomou em mãos,
prometeicamente, o fogo da espiritualidade dos mártires, criando paralelos
sintonizados com a situação anterior: em lugar do cárcere, refugiou-se na
ermida; na falta de perseguidores, resistiu às tentações do demônio; livre
de torturas, abraçou jejuns e penitências. Assim, tornou-se pioneiro da
vida monástica na tradição cristã
O recuo de Antão é, ainda hoje, uma lição de sabedoria. Na verdade, Antão
trocou tantas vezes de lugar para ir em busca de si mesmo. É como aqueles
turistas que viajam à Índia para tentar encontrar, do outro lado do mundo,
o que estão buscando no próprio coração. Todos tentando evitar em seus
futuros túmulos o epitáfio cunhado por Fernando Pessoa: "Fui o que não sou"
Recuar é dar um tempo para si mesmo. Hoje, muitos o fazem em função da
saúde física. Malham durante horas, preocupados com a aparência frente aos
olhos alheios. Mas não são capazes de isolarem-se em sua interioridade,
orando, meditando, deixando a subjetividade fluir ao sabor do Espírito
Às vezes deixamos de orar com medo de que a luz divina nos faça enxergar
nossas contradições, carências e faltas, ofensas e omissões. Medo da
conversão, que é uma categoria de trânsito a vida vinha nesta direção e,
agora, deve abraçar outra. Ou, então, fazemos da oração uma repetição de
fórmulas, sem que se modifique a nossa atitude perante os outros
Continuamos egoístas, mesquinhos e acomodados. Ou buscamos na oração algo
"diferente", qual uma droga que nos excita, sem que o serviço ao próximo,
principal exigência evangélica, ocupe preponderância em nossa vida
Antão é um desafio emblemático nesses tempos de aldeia globalizada, em que
nunca estamos inteiramente a sós, ainda que não haja ninguém em casa
À nossa volta, solicitam-nos a TV, o rádio, o telefone. E, sob o pretexto
de que não podemos nos desligar já que informação é poder -, deixamos de
nos religar interiormente (donde provém a palavra Œreligião¹). Assim,
aprofunda-se o nosso vazio espiritual e, como um organismo desprovido de
alimento, aos poucos esgarçam-se os nosso valores. Fazemos concessões
antônicamente inconcebíveis, vamos sendo comidos pelas bordas, corroídos
por uma rotina que nos empurra para a indigência subjetiva
Como no Universo não há vazios - ensina a física -, nossa subjetividade vai
se dilatando para abrigar a vaidade, a prepotência, as ambições desmedidas.
Entre o nosso discurso e os nossos impulsos mais interiores cria-se uma
defasagem. Inseguros, tornamo-nos agressivos, que é o modo mais pueril de
tentar encobrir o mal-estar que sentimos conosco. O problema é que
descontamos nos outros, que nada têm a ver com a nossa incapacidade de
seguir o exemplo de Antão ao menos uma vez ao dia
Se ao menos dedicássemos uma hora por dia para, como Antão, ficarmos no
"cume da montanha", provavelmente veríamos a vida com outros olhos e não
experimentaríamos essa indigência espiritual que nos faz irritadiços, com
sérios riscos de nos arrastar ao cinismo. Não vale o pretexto da falta de
tempo. Neste caso, basta trocar uma das três refeições por um tempo de
nutrição espiritual: a leitura de um texto bíblico, a música sacra, o
silêncio inebriante. Não para mero deleite espiritual, como quem tenta
fazer de Deus o seu objeto de consumo. Mas para dilatar o coração na
direção do amor
Antão era uma pessoa feliz. Porque encontrou o seu próprio centro Aquele
que habita o mais íntimo de nós mesmos e nos faz descentrar no outro. Essa
é uma experiência mística, que todo amor conhece. E Péguy tinha razão: é
também a meta de todo projeto político que merece ser levado a sério.
* Frei Betto. Escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de "Mística e
Espiritualidade" (Rocco), entre outros livros
https://www.alainet.org/pt/articulo/106845
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