Sementes de girassol
30/12/2002
- Opinión
No próximo ano, fecharei a minha caixa de Pandora e farei passarinhar
todos os bons propósitos que desafiam a minha fé. Recolherei num
jardim de tulipas essa tristeza d¹alma que definha o meu ego
arrastado pela vaidade.
No próximo ano, soterrarei de perdões o meu mal-querer e de afagos a
sórdida tendência de apostar na desgraça alheia. Erguerei a minha
taça à vitória do outro e brindarei de louvores as conquistas dos que
invadem a minha reserva de caça. Serei dom e não dor.
No próximo ano, fecharei as asas da ambição e, vazio de desejos,
cavarei túneis no mais profundo de mim mesmo para deixar fluir as
águas da plenitude.
No próximo ano, desviarei o olhar da lascívia que esgarça o meu
espírito e os ouvidos aos tambores que me impedem de dançar na
contramão. Não buscarei senão os odores suaves da brisa matinal e
darei ao meu paladar o que amarga a língua e adoça o espírito.
No próximo ano, porei em prática sábias lições de vida: pão que se
guarda endurece o coração; a cabeça pensa onde os pés pisam; o
contrário do medo não é a coragem, é a fé. Sairei à rua repleto de
silêncio, grávido do ser que me transfigura em morada divina.
No próximo ano, segredarei aos peregrinos os três aforismos de meu
bem-viver: Deus tem sabor de justiça; a vida trafega a bordo do
paradoxo; a morte é verbo e não se conjuga no presente, é sempre
pretérito ou futuro.
No próximo ano, espalharei em meu peito sementes de girassol e
cobrirei a cabeça com ervas aromáticas, para que a minha pele
transpire luz e a minha boca profira perfumes. Não me privarei de
suculentas alegrias e só darei a meu corpo o que empanturra o
espírito.
No próximo ano, cultivarei cada um de meus cabelos brancos, modelarei
de gorduras a flacidez de minhas carnes e preservarei cioso as rugas
que maquiam de sabedoria o meu rosto. Serei belo como o tronco nodoso
de uma velha castanheira que, retorcida de braços, abraça o Sol para
em seus pés irradiar sombras.
No próximo ano, tratarei o semelhante com a reverência dos anjos e
lavarei as portas de minha cidade para acolher em festa os que trazem
boas-novas. No contorno dos dias, amarrarei fitas brancas e escovarei
a boca da noite até limpar a garganta de sonâmbulas aflições.
No próximo ano, não permitirei à língua servir de passarela ao mal-
dizer, nem darei ouvidos a quem insiste em violar meu silêncio.
Voarei sereno como os albatrozes que, todas as manhãs, impedem que o
fragor das ondas fira a pele porosa das praias.
No próximo ano, não me deixarei iludir pelos profetas da desgraça,
nem me hipnotizar pelos que pincelam de cores vivas os cemitérios.
Ficarei atento ao olhar perplexo cravado no rosto encardido dos que
suplicam uma côdea de pão e um gole de paz.
No próximo ano, trocarei minhas horas preciosas por horas ociosas e,
recostado num banco de parque, darei milho aos pombos e cantarei
laudes com os mendigos que, deitados na grama, escarnecem da agonia
do tempo. Banharei a minha pele na lagoa pontilhada de moedas
faiscantes de prata e, boca aberta sob o chafariz, beberei até
embriagar-me de insensatez.
No próximo ano, violarei todas as regras da civilidade torpe que me
engravata de cabrestos e rasgarei as etiquetas que me fazem perder
horas em cuidados supérfluos. Arrancarei do pulso as algemas do
relógio que me escravizam ao ritmo implacável de minutos e segundos.
No próximo ano, serei irresponsavelmente feliz, liberto dessa
onipotência que recobre de fúria a minha excessiva fragilidade.
Confessarei a mim mesmo os meus pecados e, crucificado numa roda-
gigante, ressuscitarei com a inocência das crianças que sorriem
prenhes de vertigens.
No próximo ano, serei cidadão de um país governado por um cavaleiro
que chegue montado num burrico e tenha as mãos calosas como quem
cavou as entranhas da terra. Não darei lugar aos príncipes revestidos
de palavras vãs, nem porei a minha confiança nos arautos surdos ao
clamor dos desvalidos.
No próximo ano, farei de Deus o meu pai e o meu pão, e abrirei em
laços o meu abraço, até transmutar solitários em solidários. Amarei
sobre todas as coisas, para que a minha riqueza, despojada de bens,
seja farta em afetos. Fecharei os olhos para ver melhor e, ao
crepúsculo, serei consumido e consumado pelas chamas que ardem no
lado avesso do meu ser.
* Frei Betto é escritor, autor de "Entre todos os homens" (Ática),
entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/106803
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