Ser criança é uma arte
08/10/2002
- Opinión
Aluno do Jardim de Infância Bueno Brandão, em Belo Horizonte, em minha sala
de aulas não havia carteiras, apenas umas tantas mesas de pernas curtas,
adequadas à nossa estatura, e cadeiras liliputianas. Nossas tarefas
consistiam em sonhar, imaginar, e rabiscar, desenhar, moldar em argila
estranhas figuras, colorir com aquarela, empilhar cubos de madeira que,
sobrepostos, se transformavam em casas, pontes, prédios e castelos.
Dispostos em linha reta, viravam ferrovias, carruagens, estradas. Em
círculos, arenas circenses, represas ou lagos. Encantava-me recortar
cartolinas na forma de casas e colá-las - fazíamos grude com farinha de
trigo e água -, pois tinha certeza de que, à semelhança de meu tio Paulo,
quando crescesse eu seria arquiteto.
Esse entrelaçar de tato, visão e imaginação organizava o meu mundo
interior. Bastavam poucos apetrechos para os meus sentimentos encontrarem
expressão nos objetos que eu manipulava ou nas linhas de meus desenhos. Ao
fazê-lo, adquiria uma certa distância relacional: eu era eu, meus pais meus
pais, a babá a babá; as árvores das ruas, coisas que têm uma forma
diferente de vida da minha; os pássaros falam linguagens que só eles
entendem; dragões, bruxas e duendes, que povoavam o meu imaginário, não
eram pessoas como meus pais, nem coisas como os paralelepípedos que
calçavam as ruas do bairro, e sim entidades espirituais, como Deus e os
anjos, que eu venerava e com as quais mantinha uma relação de temor,
reverência e fascínio.
O melhor da infância é o mistério. Povoa a criança com uma força
imponderável, superior a todas as realidades sensíveis. O mistério seduz
e, tecido em encantos, assusta ou atrai ao não mostrar o rosto nem
pronunciar o próprio nome. Habita aquela zona da imaginação infantil tão
indevassável quanto impronunciável. Nela, as conexões rompem limites e
barreiras, o inconsciente transborda sobre o consciente, o sobrenatural
confunde-se com o natural, o divino permeia o humano, o insólito, como
dragões e piratas, é de uma concretude que só a cegueira dos adultos é
incapaz de enxergar.
Os adultos devem manter-se à distância quando a criança se encontra
mergulhada em seu universo onírico. Ela sabe que carrega em si um tesouro
de percepções que os olhos alheios não podem perscrutar. Recolhida a um
canto, deitada em sua cama ou brincando em companhia de seus pares, deixa
fluir os seres virtuais que habitam o seu espírito e com quem estabelece um
diálogo íntimo, livre das amarras do tempo e do espaço. Tudo flutua dentro
dela, graças à ausência de gravidade que a caracteriza.
Se um adulto interfere, quebra-se o encanto, apaga-se a volatilidade que a
transporta a um hemisfério que não cabe na lógica adulta. O real emerge
com sua implacável geometria, onde as coisas carecem de estruturas
flexíveis. A vida empobrece, desprovida de colorido. Tudo se torna
pesadamente aritmético, como se a ave, aprisionada no chão, ficasse
impedida até mesmo de sonhar com o vôo, reduzida aos movimentos contidos de
seus passos.
Por tanta familiaridade com o mistério, as crianças são naturalmente
religiosas, como se a natureza suprisse quem se encontra biologicamente
mais próximo da fonte da vida de percepções holísticas contidas na
vitalidade das células, na mecânica das moléculas, na identidade quântica
dos átomos, onde matéria e energia são apenas faces de uma mesma realidade.
Privar a criança do mergulho no mistério, do ócio acalentador, do tempo em
que ela nem sonha em crescer - seja pela penúria material, pelo peso
esmagador da racionalidade, pelo trabalho precoce ou pelo excesso de
exposição à TV, que rouba-lhe os sonhos -, é amputá-la da infância. É
mutilar o ser, abortando a criança para apressar, de modo cruel, a irrupção
irreversível do adulto. Ao sorriso sucede o travo amargo de quem já não
logra mirar a vida como maravilha - dentro e fora de si. A insegurança
aflora, denunciando carências e tornando-as vulneráveis aos sonhos químicos
das drogas, já que o melhor da infância foi sonegado sentir-se um ser
amado.
* Frei Betto é autor de "Alucinado Som de Tuba" (Ática), entre outros
livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/106531
Del mismo autor
- Homenaje a Paulo Freire en el centenario de su nacimiento 14/09/2021
- Homenagem a Paulo Freire em seu centenário de nascimento 08/09/2021
- FSM: de espaço aberto a espaço de acção 04/08/2020
- WSF: from an open space to a space for action 04/08/2020
- FSM : d'un espace ouvert à un espace d'action 04/08/2020
- FSM: de espacio abierto a espacio de acción 04/08/2020
- Ética em tempos de pandemia 27/07/2020
- Carta a amigos y amigas del exterior 20/07/2020
- Carta aos amigos e amigas do exterior 20/07/2020
- Direito à alimentação saudável 09/07/2020