Os riscos da Alca
22/08/2002
- Opinión
Em setembro, acontece o Plebiscito Nacional sobre a Área de Livre
Comércio das Américas. Veja se é possível um tubarão tomar conta de
um tanque de sardinhas
Manhã de quinta-feira na Avenida Paulista, em São Paulo, coração
financeiro da América Latina. Seu Pedro abre um sorriso e fecha os
olhos como se fosse buscar a resposta para a pergunta que lhe é
feita: "O senhor saber o que é Alca?". Meio sem graça e cabisbaixo,
porém, ele diz não saber. Um quarteirão adiante, outro passante
arrisca um palpite: "Não é aquele grupo terrorista que está lá na
Palestina?!".
A taxista Maria do Rosário também não faz a mínima idéia. Seu colega
de praça, Amauri Arrighi, no entanto, se apressa para explicar o que
aprendeu lendo num panfleto distribuído durante uma manifestação que
parou a avenida mais movimentada da capital paulista. "Vai ser uma
desgraça para o país, porque a gente vai ficar como a Argentina",
opina.
Alca não é nome de remédio nem de grupo terrorista. É a Área de Livre
Comércio das Américas. Segundo especialistas seria a maior zona de
livre mercado do mundo, pois nos 34 países que fariam parte dela
(exceto Cuba), vivem 800 milhões de pessoas. Esse acordo atingiria
todos os aspectos da vida dos cidadãos do continente. A idéia foi
lançada durante a Primeira Cúpula das Américas em Miami, nos Estados
Unidos, em dezembro de 1994 e as negociações estão em curso.
Em relação aos prazos, a palavra aos próprios governantes, em sua
declaração conjunta no encerramento da 3ª Cúpula das Américas, em
Quebec, no Canadá, em abril do ano passado: "Instruímos nossos
ministros para que as negociações sejam concluídas, o mais tardar, em
janeiro de 2005, para buscar sua entrada em vigor o quanto antes, até
no máximo o fim desse ano".
A falta de informação ou de aprofundamento sobre esse tratado não
atinge apenas gente simples como seu Pedro, dona Maria do Rosário e
seu Amauri. O assunto vem preocupando até a toda-poderosa Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Uma pesquisa realizada
em abril pela Vox Populi revela que 52% do empresariado paulista não
têm nenhuma posição a respeito do acordo. Segundo o presidente da
entidade, Horácio Lafer Piva, há "falta de atenção" em relação ao
tema. "Se a Alca vai sair ou não é questão de negociação, mas sentar
à mesa sem estar muito certo das condições e exigências é começar um
jogo perdendo", ele comenta.
Como esse jogo é tão importante, dezenas de entidades ligadas a
Igrejas, movimentos sociais, sindicatos e partidos de esquerda estão
reivindicando a participação popular para que a sociedade conheça
seus possíveis impactos.
Para isso, estão promovendo o Plebiscito Nacional sobre a Alca, que
deverá se realizar durante a Semana da Pátria, de 1º a 7 de setembro.
Na cédula, são três as questões a serem respondidas com "sim" ou
"não": duas sobre a Alca - se o governo brasileiro deve assinar o
tratado e se deve sair das negociações - e uma sobre o Acordo de
Salvaguarda Tecnológica que o Brasil está firmando com os Estados
Unidos para a cessão da base militar de Alcântara, no Maranhão.
Diversas iniciativas estão sendo desenvolvidas por 27 mil pessoas em
todos os Estados, como debates, audiências públicas e seminários de
estudo. Fazem parte da coordenação do evento mais de sessenta
entidades, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Central Única dos
Trabalhadores, a União Nacional dos Estudantes, a Central dos
Movimentos Populares, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, entre
outras.
"A gente imagina que esse plebiscito terá dimensões muito maiores do
que foi o da dívida", avalia a secretária-executiva da campanha,
Rosilene Wansetto, referindo-se ao Plebiscito sobre a Dívida Externa
realizado em setembro de 2000, quando mais de 6 milhões de pessoas
disseram "não" ao pagamento.
Em relação ao caráter simbólico da mobilização, Rosilene não vê nisso
um problema, pois trata-se de "um instrumento de conscientização e de
participação popular, porque as pessoas precisam dizer o que pensam,
seja a favor ou contra. O plebiscito pretende ser um estímulo a
mais".
Seja qual for a conclusão, a idéia é encaminhar ao Congresso e ao
Executivo os resultados da consulta. "Queremos que os parlamentares
promovam um plebiscito formal sobre a Alca", diz Rosilene. Até existe
no Senado um projeto que vai nesse sentido, mas está parado. É do
senador Roberto Saturnino (PT-RJ), convocando um plebiscito sobre a
suspensão por 20 anos das negociações para o ingresso do Brasil na
Alca.
Afinal o que dizem os defensores do acordo? Na página oficial da
internet (www.ftaa-alca.org), eles prometem: aumento da prosperidade
através do crescimento econômico dos países membros, melhoria das
condições de trabalho e elevação dos padrões de vida da população,
melhor proteção ao meio ambiente etc. Vez por outra, porém, os
defensores mostram o objetivo de fundo, que é o de "garantir para as
empresas norte-americanas o controle de um território que vai do Pólo
Ártico até a Antártida e livre acesso, sem nenhum obstáculo ou
dificuldade aos nossos produtos, serviços, tecnologia e capital entre
todos os países do hemisfério". Foi o que disse, às claras, o general
Colin Powell, secretário de Estado do governo George W. Bush.
A embaixadora dos Estados Unidos no Brasil, Donna J. Hrinak, quando
tomou posse em abril, destacou em seu discurso que no momento há "uma
grande maturidade" na política brasileira. "Estamos começando uma
grande aventura entre o Brasil e os Estados Unidos, pois vamos ser os
líderes do processo de integração comercial do hemisfério. E dessa
aventura depende o futuro dos países que compõem a Alca", afirmou,
fazendo referência à reunião de outubro em Quito, no Equador, quando
o Brasil e os EUA passam à presidência compartilhada do comitê de
negociações da Alca, conduzindo o processo até aproximadamente 2005.
Em uma de suas declarações, o presidente Fernando Henrique Cardoso
criticou quem grita "Fora Alca". "Porque falar em perda de soberania
é blá-blá-blá. Soberania se exerce, não se discute."
Pensa diferente o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. Segundo ele,
nos moldes em que está sendo tratada, com pouca transparência nas
suas negociações e nenhuma participação da sociedade, a Alca não
interessa aos brasileiros. Conhecido por suas posições contrárias ao
governo, Guimarães alerta para a estranha lógica comercial do Brasil,
que aceita negociar com os Estados Unidos e não busca parceiros menos
poderosos ou mais vantajosos para o país. (Leia artigo à página 31)
Aos defensores do acordo, o jurista Fábio Konder Comparato lança mão
da Constituição. "As negociações são inconstitucionais. Ferem o
parágrafo único do artigo 4 da Constituição: 'A República Federativa
do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural
dos povos da América Latina, visando a formação de uma comunidade
latino-americana de nações'".
Na opinião de Comparato, isso não vem acontecendo pelo simples fato
de que os Estados Unidos, o principal negociador, "há séculos vem
implementando uma política exterior de exploração dos demais povos
latino-americanos. Uma integração só econômica e comercial, impedindo
a política, social e cultural fere a Constituição".
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP),
Comparato é um dos mais respeitados intelectuais do país. Segundo
ele, há uma transferência do poder Legislativo do Congresso para o
Executivo. Depois de negociada, a Alca vai para aprovação no
Congresso, não podendo este se manifestar com emendas, mas apenas a
favor ou contra. "Acontece que será praticamente impossível dizer não
diante do poder de pressão dos Estados Unidos."
Outras formas de consulta popular - não necessariamente um plebiscito
como no Brasil - são previstas em outros países do continente,
inclusive nos Estados Unidos. No Equador, por exemplo, haverá
protestos de rua contra a reunião de ministros em outubro.
"Estamos promovendo também um encontro de parlamentares latino-
americanos no mesmo período.
Além disso, queremos levar a Alca ao cotidiano das pessoas simples,
para que entendam que esse acordo poderá afetar também futuras
gerações, e não apenas a atual", diz o sociólogo equatoriano Fernando
Buendía, da Campanha Continental contra a Alca, que envolve diversas
organizações, inclusive as brasileiras que promovem o plebiscito em
setembro.
Colaborou Sofia Cohen
- o -
O que diz a Igreja católica
Alca também foi assunto discutido na última assembléia da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realizada em abril. Um dos que
mais tem se pronunciado contra o acordo é o bispo de Jales (SP),
Demétrio Valentini. Ele considera que o governo dos Estados Unidos
não está nem aí para a miséria da população. "Ao contrário, ele
parece entusiasmado com as oportunidades de bons negócios que as
turvas águas do momento propiciam aos espertos e poderosos."
O bispo, que já coordenou o Setor de Pastorais Sociais da CNBB,
defende iniciativas como o plebiscito sobre a Alca, pois é "hora de
gritar". "Há uma opção a fazer, entre dois caminhos que se
apresentam. É hora de compaixão, ou é hora de exploração? É mutirão
contra a miséria ou é campeonato de negócios escusos?"
- o -
Os efeitos do Nafta
De cada quatro mexicanos, um ficou pobre depois de 1994. Foi a partir
deste ano que Canadá, Estados Unidos e México (foto) colocaram em
prática o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). A
situação dos mexicanos pode servir de lição para o resto da América
Latina saber o que vem por aí se a Alca for implantada. É o que
defendem os organizadores do Plebiscito Nacional sobre a Alca. O
índice dos que vivem abaixo da linha de pobreza subiu de 49% para
75%.
Desde 1998 existe um comitê de negociações da Alca formado por vice-
ministros do Comércio de cada país. Além disso, foram criados nove
grupos de trabalho para tratar das principais áreas de negociação.
São elas: serviços públicos, investimentos, acesso a mercados,
agricultura, entre outros. As negociações estão sendo discutidas em
Miami.
- o -
Submatéria
Quem ganha, quem perde
Samuel Pinheiro Guimarães
A Área de Livre Comércio das Américas (Alca) afe- tará a todos os
brasileiros, sem exceção. Ela incluiria os Estados Unidos, o Canadá,
o México, os países da América Central, do Caribe (exceto Cuba) e da
América do Sul.
O país que participa de uma área de livre comércio não cobra impostos
de importação sobre os produtos que vêm dos países da mesma região
nem dificulta sua entrada através de quotas e outros instrumentos.
Hoje, muitos dos produtos exportados pelo Brasil para o resto do
continente pagam impostos ou estão sujeitos a quotas. É o caso do
açúcar, do suco de laranja, do aço, dos tecidos quando entram, por
exemplo, nos Estados Unidos. Por sua vez, os produtos importados pelo
Brasil que vêm dos países das Américas (com exceção do Mercosul) têm
de pagar impostos na fronteira brasileira.
O livre comércio para o cidadão, na sua qualidade de consumidor,
significa a possibilidade de comprar produtos importados mais
baratos, cuja importação pode reduzir os preços, pois aumenta a
concorrência. O outro lado da moeda: para este mesmo cidadão agora
como trabalhador, o livre comércio poderá significar a perda do seu
emprego, pois os produtos importados mais baratos, eventualmente,
acarretam dificuldades para a fábrica ou a empresa onde ele trabalha.
O livre comércio, ou mesmo a redução acelerada de tarifas, provoca
muitos deslocamentos no mercado de trabalho. Sobretudo se as empresas
dos países que fazem parte da mesma área de livre comércio forem
muito desiguais em tamanho, organização, acesso a créditos, geração
de tecnologia e apoio de seus governos.
Essa área de livre comércio seria marcada pela redução dos impostos
sobre as importações e outras barreiras. De um lado, as mais
poderosas empresas do mundo, as chamadas multinacionais americanas,
competiriam em igualdade de condições ao longo de dez anos. De outro,
estariam as empresas dos países da América Latina, que têm populações
relativamente menores, reduzidos parques industriais, Estados
enfraquecidos por suas dívidas internas e externas e sociedades
fraturadas pela acentuada pobreza e violência.
Assim, eliminados os impostos de importação e outras barreiras
econômicas, as gigantescas empresas dos Estados Unidos poderão vencer
facilmente a competição em cada um desses países com as empresas
locais, muito menores. No mercado brasileiro, essas empresas norte-
americanas levarão as brasileiras à falência ou as comprarão, quando
for de seu interesse, como já vem ocorrendo.
Os Estados Unidos têm 80% da produção das Américas, renda per capita
superior a 30 mil dólares e razoável distribuição de renda, o que
representa, portanto, grande mercado interno para suas empresas. Para
os empresários americanos é melhor investir no próprio país, lá
vender sua produção e exportar os excedentes para os primos pobres da
América Latina. Se o processo de produção exigir muita mão-de-obra, a
empresa estadunidense poderá investir no México, fazendo a montagem
de seus produtos e, dali, exportar para os Estados Unidos e para os
demais países da Alca.
O fato é que a Alca não trará maiores possibilidades de exportação
para a maioria das empresas brasileiras nem mais investimentos
estrangeiros para o Brasil. Mas, ao contrário, fará o Brasil importar
ainda mais, e o capital que atrair virá para adquirir aquelas
empresas brasileiras sobreviventes.
As compras do setor público são muito importantes em qualquer país.
No Brasil, as receitas do Estado que decorrem dos impostos pagos pela
população correspondem a cerca de 30% do produto nacional. Com elas,
o Governo Federal paga seus funcionários, juros e amortizações de
empréstimos, despesas em saúde, educação, transporte e segurança.
Hoje, o Estado pode utilizar os recursos coletados do povo para
contratar serviços e compras de empresas brasileiras que empregam
trabalhadores brasileiros, e os recursos coletados retornam à
economia nacional. Com a Alca, a história poderá ser outra.
Qualquer candidato que se eleger, ou desativará a bomba de tempo que
são as negociações da Alca ou não governará de fato. Será apenas um
procônsul, angustiado ou cínico.
* Samuel Pinheiro Guimarães é embaixador
- o -
Mais perto da África
Dentre os países da América Latina, o Brasil é o que apresenta
vínculos mais intensos e profundos com os povos africanos. Esses
vínculos, entretanto, não se encontram apenas nos laços étnicos e
culturais. Possuímos, em muitos outros aspectos, uma história comum.
No passado mais remoto fomos todos colônias da Europa; num passado
não tão remoto fazíamos parte do chamado "Terceiro Mundo", espécie de
reserva estratégica na disputa entre as grandes potências durante a
Guerra Fria. Com o fim dela e o aprofundamento da mundialização da
economia sob o comando dos Estados Unidos, a grande maioria dos
países africanos foi excluída dos circuitos financeiros e produtivos,
relegados ao chamado "Quarto Mundo", o mundo dos excluídos da
globalização.
Portanto, além do passado, temos um desafio comum em relação ao
futuro: criar uma experiência autônoma de desenvolvimento. Também
viabilizar a construção de uma nova Civilização dos Trópicos que,
baseada em nossa riqueza e diversidade de recursos materiais e
humanos e em nossa criatividade, possa abrir caminho para uma nova
era para os nossos povos onde o valor maior a ser preservado seja o
homem, e não o lucro.
A construção desse novo caminho passa pela integração cada vez maior
entre os povos latino-americanos, o brasileiro em particular, com
nossos irmãos da África, na busca de soluções comuns para problemas
igualmente comuns às inúmeras nações de nosso hemisfério.
* Aldo Rebelo é jornalista, deputado federal (PCdoB-SP) e presidente
da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados
Podem acessar pela página www.semfronteirasweb.com.br
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