Fiat Lux
19/05/2002
- Opinión
"O que se precisa hoje é de um novo tipo de imperialismo, que seja
aceitável ao mundo dos direitos humanos e dos valores cosmopolitas, o
imperialismo pós-moderno voluntário da economia global. No passado os
impérios, impuseram suas leis e seus sistemas de governo. Hoje, trata-se
de um movimento voluntário de auto-ajuda":
Robert Cooper ,"O novo Império não ataca?,
Carta Capital, 1º de maio de 2002
Uma incógnita ficou no ar, há muitos anos, quando Tony Blair comunicou em
Washington, ao lado de Bill Clinton, no dia 5 de fevereiro de 1998, a
criação da sua Terceira Via. O anuncio foi feito na mesma entrevista
coletiva em que os dois tornaram publica sua decisão de começar uma
segunda guerra contra o Iraque ( que acabou sendo transferida), e de
aprovar um Acordo Multilateral de Investimento ( o que ainda não ocorreu)
regulando a soberania do capital financeiro internacional, frente ao
poder dos estados nacionais e dos seus sistemas jurídicos locais. Na
época, muitos consideraram este anuncio conjunto, uma mera coincidência
ou fruto da rapidez e teatralidade própria destes encontros presidenciais
bilaterais. Quatro anos depois, o senhor Richard Cooper - conselheiro
político internacional do primeiro-ministro Tony Blair – se encarregou de
explicar em poucas palavras, num trabalho recém publicado no The Observer
- e também no Brasil - a relação congênita entre a Terceira Via, a
globalização financeira e o projeto de construção de "um novo tipo de
imperialismo aceitável ao mundo dos direitos humanos e dos valores
cosmopolitas". Sua publicação provocou enorme polêmica entre os
trabalhistas ingleses, por causa de sua natureza normativa. Mas a
verdade é que o artigo de Cooper não inventa nem propõe nada de novo,
apenas racionaliza e justifica, do ponto de vista moral e estratégico,
uma ordenação hierárquica e uma ação disciplinar do poder mundial que já
existe e vem sendo praticada há muito tempo, de forma explícita, e às
vezes truculenta, por parte dos Estados Unidos e seus principais aliados.
Richard Cooper, como todo bom inglês poupa-se palavras e vai direto ao
ponto, sem receios nem subterfúgios. Para ele, as Grandes Potências se
"tornaram honestas e não querem mais lutar entre si". Compõem agora um
novo clube, dos "estados pós-modernos", pacíficos e colaboradores, mas
que são uma minoria obrigada "a exportar estabilidade e liberdade" para
os demais estados que nasceram da decomposição do velho imperialismo, e
onde reina quase sempre a barbárie, o clube dos estados que ele chama de
"pré-modernos". Na relação entre estes dois mundos, Robert Cooper vê a
origem e a necessidade de três novas formas de imperialismo no mundo: um
primeiro "imperialismo cooperativo", entre as nações pós-modernas, que já
foram chamadas, no século XIX, de "civilizadas"; um segundo "imperialismo
baseado na lei das selvas", que rege as relações entre os estados
civilizados e os "estados pré-modernos" ou "fracassados", incapazes de
assegurar os seus próprios territórios nacionais; e finalmente, um
terceiro tipo de imperialismo, que Cooper chama de "voluntário da
economia global", "gerido por um consórcio internacional de instituições
financeiras como o FMI e o Banco Mundial" e apoiado na aceitação por
parte dos subordinados de"uma nova teologia da ajuda que enfatiza a
governança e defende o apoio aos estados que se abram e aceitem
pacificamente a interferência das organizações internacionais e dos
Estados estrangeiros". Depois disto, ficou mais fácil compreender hoje
que naquele fevereiro de 1998, Tony Blair e Bill Clinton estavam de fato
anunciando o nascimento da Terceira Via, e ao mesmo tempo, defendendo as
duas novas formas de imperialismo de que nos fala Cooper: o da "lei da
selva" na relação com os estados "pré-modernos"e o da "lei do mercado"com
relação aos estados e governos bem comportados, como foi o caso da
América Latina nos anos 90.Nada que seja novo ou surpreendente para
qualquer latino-americano menos desavisado. Mas apesar disto, esta nova
realidade descrita por Cooper, foi objeto de uma permanente negação por
parte dos intelectuais e políticos social-democratas brasileiros que
conceberam e comandaram, nestes últimos oito anos, a política
internacional de inserção econômica e diplomática do país. Por isto
soaria divertido, se não fosse lamentável, assistir um teórico e
estrategista inglês da Terceira Via, ensinando aos seus colegas, social-
democratas brasileiros, o que eles nunca quiseram ouvir nem entender: o
bê-abá do novo imperialismo que acompanhou a globalização capitalista
destas últimas décadas.
Este tema ocupou um lugar central na crítica intelectual e política ao
projeto internacional do governo Cardoso. Ele mesmo participou desta
discussão, em vários momentos, durante a década de 1990, denunciando a
"visão conspiratória" dos críticos que sublinharam a dimensão política e
imperial do processo de globalização e defenderam a necessidade de
estratégias nacionais diferenciadas e ativas de inserção no processo da
globalização econômica. Exatamente o que seu governo não fez,
submetendo-se à uma terapia indiferenciada e transformando-se num caso
paradigmático de "auto-imposição voluntária" da "teologia da ajuda"
recomendada pelos organismos multilaterais e pelos governos dos "estados
pos-modernos". Nestes oito anos, o presidente brasileiro não perdeu
oportunidade de denunciar a ignorância dos seus críticos, incapazes de
entenderem a nova economia, a sociedade em redes, a globalização e as
oportunidades abertas pelo avanço tecnológico, pela expansão dos mercados
desregulados e pelas novas formas de governança global.
Com a ascenção de Bush e os atentados de 11 de setembro, os fatos se
precipitaram e a história real jogou rapidamente na lata do lixo, artigos
e mais artigos, livros e mais livros sobre o fim do interesse nacional,
das fronteiras, dos estados, da política, da velhas formas de exercício
do poder militar, e sobre o anacronismo das visões conspiratórias e
imperialistas do mundo. Foi quando os intelectuais tucanos começaram a
relembrar velhas lições que haviam esquecido nos seus momentos de maior
ingenuidade e embevecimento com o renascimento globalitário e com a força
incontível dos mercados e das redes. Bastou uma rápida retomada militar
americana do comando político mundial e uma crise generalizada da "nova
economia", para que se confirmasse a impressão de que estes intelectuais
perderam uma década falando bobagem e fazendo digressões sobre fantasias.
Hoje despertam do seu mundo de ilusões atordoados com a volta da guerra,
das armas e do poder político ao epicentro da ordem mundial e assustados
com as novas diretrizes da política internacional norte-americana. E é
neste estado de torpor mental que foram obrigados a ouvir um inglês -
intelectual orgânico da Terceira Via - defendendo o rigor ético e a
necessidade prática de um "novo tipo de imperialismo pós-moderno", seja
na sua versão mais suave e consentida, seja numa versão mais selvagem e
violenta. Consciente ou inconscientemente, estes intelectuais sempre
quiseram diluir ou esconder a importância dos conflitos de interesses
entre estados e classe sociais na explicação da ordem mundial pós-guerra
fria. Erraram redondamente e hoje estão sendo obrigados a refazer seus
conceitos e suas análises. Nesse sentido, se tudo fossem só idéias e
papéis, o mais fácil, rápido e indolor seria esquecer todas as bobagens
globalitárias que foram ditas na década de 90, para não perder mais tempo
do que já se perdeu lendo o palavreado utópico e as reflexões ingênuas
dos nosso portavozes locais desta "auto-imposição suave" defendida pelo
senhor Cooper.
Mas esta não é uma questão meramente acadêmica ou teórica, trata-se de um
erro político e econômico que teve conseqüências trágicas em quase toda a
América Latina. Basta olhar, neste momento, para a Argentina, sem
esquecer que nestes últimos oito anos, apesar da sua obediência cega, o
Brasil se transformou numa economia praticamente estagnada, do ponto de
vista do crescimento da renda per capita da sua população. Mas agora não
bastam discursos contra as agencias internacionais nem nariz torcido
contra a Administração Bush, sobretudo partindo de um governo que seguiu
fielmente suas recomendações durante seus oito anos de mandato, e que foi
salvo pelo FMI e pelo governo norte-americano, na hora da quebra, em
1998. Neste momento, não é elegante e nem basta cuspir no prato em que
se comeu, é necessário rever toda a teoria equivocada em que se sustentou
a política econômica e a política externa brasileira, durante este
período de dócil aceitação da "teologia da ajuda"e de suas rigorosas
prescrições monetárias e fiscais. Passo prévio à uma reavaliação das
políticas, das reformas liberais, e do lugar e papel cumprido nesta
última década, pelos governos latino-americanos, dentro deste projeto
imperial anglo-saxão e social-democrata de que nos dá notícia o senhor
Robert Cooper.
Hoje as instituições financeiras e o governo norte-americano culpam a
corrupção argentina e o gasto publico das províncias, pelo fracasso das
políticas e reformas liberais que eles mesmos patrocinaram e apoiaram
durante toda a década de 90. Como relembra Joseph Stiglitz, em artigo
publicado no Washington Post do dia 12 de maio recém passado, durante
todo este período, a Argentina foi classificada pelos analistas dos
bancos de investimento e dos organismos multilaterais como uma economia
"A-Plus", por haver cumprido religiosamente todas as recomendações que
lhe foram feitas, sem que jamais alguém tenha falado em corrupção ou
lassidão fiscal. Como não é crível que estes pecados tenham sido
cometidos da noite para o dia, é mais do que hora de reavaliar os
princípios teológicos que destruíram completamente a sociedade e a
economia Argentina, para não falar dos demais "milagres" latino-
americanos da década passada.
O que espanta, nesta situação é ver o Ministro da Fazenda brasileiro
cobrar dos candidatos às eleições presidenciais uma declaração conjunta
de lealdade incondicional à mesma "teologia" que destruiu a Argentina.
Para o Ministro só existe esta política econômica e ela não pode nem deve
ser objeto de uma discussão democrática, porque pertence ao campo das
verdades teologais. Mas isto não é uma novidade, pois já fazem oito anos
que o Ministro repete monotonamente esse mesmo sermão. O que assusta é
quando ele sai do seu normal e se exalta, brandindo sua bíblia como se
fosse inquisidor, uma espécie de Torquemada da "teologia da ajuda".
https://www.alainet.org/pt/articulo/105931
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