Meu lado mulher

03/03/2002
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Meu lado mulher incomoda-se de receber homenagens num dia do ano - 8 de março -, enquanto meu lado homem se farta com 364 dias. Talvez se faça necessária esta efeméride, dor recente de uma cicatriz antiga. Porque vive-se numa sociedade machista: matrimônio - o cuidado do lar; patrimônio - o domínio dos bens. O marido possui a casa, o carro e a mulher, que incorpora ao nome o da família dele. A casa, ele exige que se limpe todo dia. O carro, envia à oficina ao menor defeito. À mulher, ser multifacetado, cabe o dever de cuidar da casa, dos filhos, das compras e do bom-humor do marido, que nem sempre se lembra de cuidar dela. Meu lado mulher nunca viu o marido gritar com o carro, ameaçá-lo ou agredi-lo. Nem sempre, entretanto, ela é tratada com tanto respeito. Na Igreja católica, os homens têm acesso aos sete sacramentos. Podem até ser ordenados padres e, mais tarde, obter dispensa do ministério e contrair matrimônio. As mulheres, consideradas pela teologia vaticana um ser naturalmente inferior, só têm acesso a seis sacramentos. Não podem receber a ordenação sacerdotal, embora tenham merecido de Jesus o útero que o gerou; o seguimento de Joana, de Susana e da mãe dos filhos de Zebedeu; a defesa da mulher adúltera; o perdão à samaritana; a amizade de Madalena, primeira testemunha de sua ressurreição. Meu lado mulher tem pavor da violência doméstica; do pai que assedia a filha, jogando-a nas garras da prostituição; do patrão que exige préstimos sexuais da funcionária; do marido que ergue a mão para profanar o ser que deu à luz seus filhos. Diante da TV ou de uma banca de revistas, meu lado mulher estremece: cala a boca, Magda! Ela é a burra, a imbecil que rebola no fundo do palco, mergulha na banheira do Gugu, expõe-se na casa do brother, associa-se à publicidade de cervejas e carros, como um adereço a mais de consumo. Meu lado mulher tenta resistir ao implacável jogo da deconstrução do feminino: tortura do corpo em academias de ginástica; anorexia para manter-se esbelta; vergonha das gorduras, das rugas e da velhice; entrega ao bisturi que amolda a carne segundo o gosto da clientela do açougue virtual; o silicone a estufar protuberâncias. E manter a boca fechada, até que haja no mercado um chip transmissor automático de cultura e inteligência, a ser enxertado no cérebro. E engolir antidepressivos para tentar encobrir o buraco no espírito, vazio de sentido, ideais e utopia. Meu lado mulher esforça-se por livrar-se do modelo emancipatório que adota, como paradigma, meu lado homem. Serei ela se ousar não querer ser como ele. Sereia em mares nunca dantes navegados, rumo ao continente feminino, onde as relações de gênero serão de alteridade, porque o diferente não se fará divergente. Aquilo que é, só alcançará plenitude em interação com o seu contrário. Como ocorre em todo verdadeiro amor. Frei Betto é escritor, autor de "A mulher samaritana" (Salesiana), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105666
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