Economia e cidadania
23/02/2002
- Opinión
Após a Segunda Guerra Mundial, as nações industrializadas conheceram
o Estado de bem-estar social, sustentado por uma política de pleno
emprego que, por sua vez, incrementou a captação de tributos capazes
de expandir a seguridade social.
Aquela nova ordem econômica não permitiu, contudo, que a política de
pleno emprego se estendesse às nações periféricas. Pressionadas pela
postura neocolonialista dos centros financeiros, essas nações
tornaram-se exportadoras de produtos e de royalties, sugadas em suas
riquezas e recursos. Portanto, só uma pequena parcela da humanidade
conquistou o direito aos 40: trabalhar 40 horas por semana; em pouco
mais de 40 semanas por ano; ao longo de pouco menos de 40 anos de
vida.
Com o advento do neoliberalismo, nos países periféricos milhões de
pessoas excluídas das oportunidades de emprego ficaram impedidas de
acesso aos direitos econômicos e sociais e, portanto, à cidadania. E
nos países centrais o Estado de bem-estar social retraiu-se, enquanto
as corporações privadas queixavam-se da redução de seus lucros.
Iniciou-se, então, o vale-tudo. Bens estatais e públicos foram
saqueados pela política de privatizações. Deixou-se de proteger a
esfera produtiva e favoreceu-se a especulativa, que assegura retornos
mais imediatos e exige menor absorção de força de trabalho.
Na ótica keynesiana, havia estreita conexão entre emprego e direitos
de cidadania. Agora, quanto maior o desemprego ou o risco de ser
engolido por ele, menor o exercício da cidadania. Frente aos
exorbitantes direitos das corporações transnacionais, os cidadãos
deixam de ser sujeitos dotados de direitos, O peso descomunal das
pessoas jurídicas esmaga os direitos da pessoa física. Salva-se
apenas quem tem o privilégio de se abrigar sob a marquise de uma
pessoa jurídica. Fora disso, temos uma humanidade desprovida de
cidadania.
Keynes não encarava o direito à cidadania como um princípio a priori,
como faz a doutrina social da Igreja católica. Para ele, a cidadania
dependia da inserção da pessoa no mercado, ou seja, da possibilidade
de acesso a produtos e serviços. Hoje, o acesso à cidadania é, para
bilhões de pessoas, tão restrito quanto ao mercado.
Como sair do impasse? Uma alternativa pós-capitalista deverá combinar
políticas de ampliação dos postos de trabalho (empregos) com
políticas de valorização de trabalhos sem vínculo empregatício, como
os que são realizados em casa, na comunidade, em função dos estudos,
e nas atividades culturais e recreativas. Elimina-se, assim, a
discriminação entre trabalho produtivo por sua forma (trabalho
remunerado) e trabalho produtivo por seu conteúdo (trabalho
voluntário), ambos necessários à reprodução e realização da vida
humana. Supera-se, assim, a associação entre pleno emprego e
cidadania.
Todos têm direito à cidadania, tenham ou não um trabalho remunerado.
Ao ultrapassar o critério do vínculo empregatício, inclui-se no
conceito de cidadania o tempo dedicado à coletividade, tanto de
pessoas quanto de empresas. Empresa-cidadã é a que investe no
benefício coletivo sem auferir lucros financeiros. Ela simplesmente
paga a sua dívida social.
Nessa perspectiva, o fim da exclusão social não se medirá apenas pela
inserção no mercado, mas também pela inserção na vida coletiva, em
atividades que contribuam para promover o bem-estar social. Cidadania
passará a ser sinônimo, não do status conferido pela posição no
mercado, mas do exercício do meu dever em relação a todos e do dever
de todos em relação a mim, incluindo a natureza, em função da
plenitude da vida.
Diante do abuso da autoridade, a pergunta não mais será: Sabe com
quem está falando? E sim: Quem o senhor pensa que é? O respeito aos
direitos humanos sustentará o paradigma da cidadania, universalmente
concebida e acatada.
Essa perspectiva só será alcançada na medida em que a todos for
assegurada uma renda mínima capaz de permitir-lhes o acesso a
produtos e serviços. Aqui entram duas questões básicas: definir, em
dado contexto social, qual o rendimento mínimo que uma pessoa
necessita para desfrutar de uma vida digna e feliz; e delimitar o
teto de acumulação das pessoas jurídicas, de modo a favorecer a
distribuição de renda.
Do ponto de vista econômico, essa equação aqueceria a demanda e a
produtividade, reduzindo significativamente a desigualdade. Mas, dos
pontos de vista subjetivo e ético, ela exige profundo senso de
justiça, a começar pelo princípio bíblico de reconhecimento do outro
como meu semelhante e expressão da imagem divina.
* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Emir Sader, de
"Contraversões civilização e barbárie na virada do século"
(Boitempo), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105628?language=en
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