Lições de Porto Alegre
21/02/2002
- Opinión
No programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, gravado após o Fórum
Social Mundial de 2002, perguntaram a Boaventura de Souza Santos se o Partido
dos Trabalhadores teria instrumentalizado o Fórum. O sociólogo português, que
tinha sido figura de relevo nesse evento, respondeu dizendo que o PT é muito
pequeno para isso. Tarso Genro, prefeito de Porto Alegre, em entrevista dada na
mesma ocasião à Folha, afirmou que todos os partidos de esquerda do mundo,
unidos, não conseguiriam convocar e realizar algo como o Fórum Social Mundial.
Ainda que o consideremos somente em termos de números, o Fórum foi um
indiscutível sucesso. As afirmações de Boaventura e Tarso partem dessa
constatação, mas também apontam para as razões desse sucesso.
Do primeiro para o segundo os números saltaram. Quanto aos participantes,
por exemplo, dos 20.000 de 2001 passou-se a 50.000 em 2002, entre os quais
35.000 “ouvintes”, de Porto Alegre e de muitas partes do Brasil e países
vizinhos, que para lá acorreram - enfrentando às vezes longas viagens de ônibus
- para ver e ouvir de perto pessoas que admiram e viver o clima energizante
desse grande encontro mundial.
Mas esse sucesso é mais significativo se considerarmos o aumento do número
de delegados, isto é, pessoas inscritas no Fórum como representantes de
entidades e movimentos da sociedade civil: dos 4.000 de 2001 passou-se a 15.000
em 2002, representando 4.909 organizações de 131 países. Na verdade, o que de
fato atraiu tantos delegados foram as novidades de que o Fórum era portador: seu
caráter plural e não diretivo, que unifica respeitando a diversidade; sua
abertura a todos que quisessem dele participar - excetuando-se representantes de
governos, partidos enquanto tais e organizações armadas; e o fato de ser uma
iniciativa da sociedade civil para a sociedade civil, que criou um novo espaço
de encontro - o primeiro e talvez o único desse tipo no nível mundial - sem o
controle de governos, movimentos, partidos e outras instituições nacionais ou
internacionais que disputam poder político.
De fato, para esses delegados o Fórum era realmente o que seus
organizadores pretendiam que fosse: um espaço horizontal em que podiam,
livremente, dar visibilidade a suas propostas e lutas - sem que nenhuma fosse
considerada mais importante que a outra e sem que ninguém pudesse impor suas
idéias ou seu ritmo aos demais -, intercambiar experiências, aprender e
realimentar-se pelo conhecimento de outras lutas, esperanças e propostas,
aprofundar suas análises sobre as questões que se levantam em seus campos de
ação, articular-se nacionalmente e sobretudo planetariamente. Ou seja, ganhar
mais eficiência e avançar em seu trabalho de transformação social.
Sem que isso signifique descompromisso ou fuga de responsabilidades,
seguramente não haveria tanta disposição em participar desse evento se fosse
para nele receber diretivas e palavras de ordem, ser "patrulhado" em suas
opções, ter que engajar-se disciplinadamente em ações e mobilizações, aprovar
declarações, moções, tomadas coletivas de posição. Por isso mesmo os
organizadores do Fórum inscreveram em sua Carta de Princípios que ele não se
pronuncia enquanto Fórum, ninguém pode falar em seu nome, em nenhum de seus
encontros se gastará tempo para discutir e aprovar "documentos finais".
Essa Carta estabelece, explicitamente, que o Fórum Social Mundial de Porto
Alegre não tem caráter deliberativo. Isto é também o que acontece com o Fórum
Econômico Mundial, de Davos, ao qual o Fórum de Porto Alegre se propõe como
alternativa (é para realçar esse caráter que se realiza exatamente nos mesmos
dias). Esses dias são, para seus participantes, somente um momento mais forte e
intenso de aprofundamento de suas opções e articulações, no nível mundial, numa
ação que já existia antes deles e continuará depois deles.
É evidente que por detrás dessa semelhança existe uma enorme diferença: os
participantes de Davos visam manter e aumentar a dominação do capital - do qual
eles são os controladores - sobre os seres humanos em todo o mundo, bem como a
expansão de seus negócios privados. Os de Porto Alegre - alimentando-se dos
crescentes protestos que surgem em toda parte contra uma globalização ditada
pelos interesses desse capital, querem avançar em propostas para a construção de
um outro mundo, centrado no ser humano e respeitoso da natureza, que eles
consideram não somente possível como necessário e urgente, e que, na verdade, já
estão construindo em sua ação prática.
Essa diferença de objetivos e conteúdos determina também uma diferença de
métodos: a principal atividade desenvolvida em Davos é a de conferências,
palestras e debates sobre temas previamente definidos, para as quais seus
organizadores convidam os grandes expoentes intelectuais do "pensamento único"
neo-liberal, os dirigentes políticos das nações mais poderosas e os donos ou
executivos das grandes multinacionais. No Fórum de Porto Alegre há também um
grande espaço aberto para conferências, palestras e debates, assim como para
testemunhos de pessoas com experiências ou reflexões marcantes. Para isso, como
em Davos, são convidadas pessoas que vêm refletindo ou agindo em torno dos temas
escolhidos - sendo que no Fórum de Porto Alegre de 2002 as conferências foram
confiadas não mais a pessoas isoladas mas a grandes redes mundiais. Mas a
atividade mais rica do Fórum Social Mundial é a que se dá em torno das oficinas
e seminários propostos livremente pelos seus próprios participantes e por eles
organizados: 400 em 2001 e 750 em 2002. Na verdade é o burburinho alegre que se
forma em torno dessas oficinas e seminários que cria o ambiente entusiasmado em
que o Fórum Social Mundial se desenvolve, com cores e barulhos variados,
protestos bem-humorados e divulgação de ações e propostas, assim como
performances e acontecimentos inesperados, nas salas, corredores e jardins do
espaço em que se realiza - totalmente ao contrário do que acontece no cinza bem
comportado de Davos.
Estas opções organizativas do Fórum Social Mundial evidentemente não se
concretizam sem incompreensões, tensões, desvios, e mesmo tentativas de
recuperação do Fórum como um todo. Sua magnitude acende apetites, e seu caráter
não piramidal incomoda a quem tem pressa de ver as coisas mudarem e foi formado
dentro dos paradigmas tradicionais da ação política.
Grande parte dos jornalistas, por exemplo - e isto se reflete na cobertura
dada ao Fórum - acostumados a entrevistar líderes e gurús, ou realçar lutas pelo
poder, não conseguem entender porque não há um "documento final", ou "propostas
concretas". Não pedem o mesmo a Davos, mas querem que a alternativa a Davos as
apresente. Têm dificuldade em compreender que o Fórum Social Mundial não é uma
cúpula, mas uma das bases de um movimento social que para se desenvolver não
pode ter cúpulas nem donos. "Sínteses finais" de cinco dias de trabalho, com
15.000 ou 50.000 pessoas, além de serem necessariamente empobrecedoras, só
poderiam ser por elas aprovadas através de algum tipo de manipulação. E todos
saem seguramente mais felizes do que se tivessem tido que lutar para incluir ao
menos uma linha de suas propostas no documento final...
Na verdade surgem no Fórum centenas de propostas concretas, inclusive de
mobilizações específicas, como neste ano contra a ALCA. Ou novas reflexões, como
a que neste ano emergiu, sobre a mudança interior dos que lutam pela mudança do
mundo. Tratado em muitas oficinas e seminários, esse tema foi objeto de uma
conferência que atraiu mais de 2.000 pessoas. Mas nenhuma dessas propostas e
reflexões é do Fórum enquanto tal. São de responsabilidade de quem as assumiu. E
a elas se associarão todos aqueles que optarem por isso, como sujeitos de suas
decisões.
Naturalmente também surgem tensões até entre os que organizam o Fórum, ou
deles se aproximam para ajudar. Há por exemplo os que gostariam de ver o
Conselho Consultivo Internacional do Fórum se transformar em um novo comando
mundial da luta contra o neo-liberalismo, controlando e direcionando esse
processo. As perspectivas de continuidade assumidas pelos organizadores parecem
apontar para outro sentido, com a consolidação do método orientado pela Carta de
Princípios do Fórum. Firma-se o conceito de que o Fórum é um processo, e não um
evento e nem uma nova organização internacional dirigida pelos líderes de um
"pensamento único" substitutivo, o que lhe seria fatal. É preciso também cuidar,
por exemplo, para que as conferências não terminem com "sínteses orientadoras",
votadas pelo respectivo "plenário", ou para que não prevaleçam sobre as
oficinas. Ao mesmo tempo, as decisões tomadas até agora pelos organizadores
apontam para que o poder convocatório do Fórum produza em mais países do mundo a
mesma mobilização que ocorre no Brasil. O Fórum de 2003 começará com
provavelmente uma dezena de Fóruns regionais ou temáticos nas diferentes áreas
geopolíticas do mundo, de setembro a dezembro de 2002, até chegar a um novo
Fórum centralizado de novo em Porto Alegre. O mesmo processo recomeçaria em
setembro de 2003, podendo desembocar, em 2004, em um encontro mundial na Índia.
Na verdade, o grande desafio para os organizadores do Fórum Social Mundial
não é o de definir novos e melhores conteúdos que levem a propostas cada vez
mais concretas, mas sim o de assegurar a continuidade da forma dada ao Fórum -
um caso em que o meio é determinante para os fins a alcançar. Os conteúdos
surgirão naturalmente do processo assim lançado, dentro da própria luta da
humanidade por um outro mundo, e serão necessariamente canalizados para as
várias edições do Fórum, com questões comuns a todas e com as especificidades de
cada região do mundo em que se realizar. O que importa é garantir que esse novo
paradigma de ação política transformadora, criado pelo Fórum Social Mundial, não
seja engolido para dentro de "odres velhos".
* Francisco Whitaker, Secretário Executivo da
Comissão Brasileira Justiça e Paz, da CNBB, e
membro do Comitê de Organização do Fórum Social
Mundial (texto revisto de comunicação feita à
Comissão Episcopal de Pastoral, da CNBB, em 19 de
fevereiro de 2002).
https://www.alainet.org/pt/articulo/105627
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