Caras
04/10/2001
- Opinión
Num vôo da American Airlines, semana passada nos EUA, os passageiros,
tomados pela síndrome do pânico, cismaram com a cara de um homem de
aspecto árabe. Ninguém lhe pediu identidade ou sequer entabulou com
ele uma simples conversa para esclarecer a dúvida. Estivesse ali o
senador José Sarney, diriam tratar-se de um português, dono de uma
loja de atacados. Fosse o vice-governador Newton Cardoso, seria
confundido com o chefe da segurança do governador de Minas.
Quem vê cara não vê coração. Nem profissão, posição social ou
intenção. Quem poderia supor que, com aquele ar de lorde britânico, o
juiz Lalau iria embolsar tantos bilhões dos cofres públicos? Porém, o
passageiro da American Airlines, que não era um belo tipo faceiro,
foi encarado pela imaginação aterrorizada de seus colegas de vôo,
embora tivesse se submetido aos mesmos rigorosos controles ao
embarcar.
Na Faculdade de Direito da UFMG, na primeira metade do século
passado, meu pai conheceu professores que creditavam, como
científicas, teorias racistas do italiano Lombroso. Segundo este
senhor, cujo aspecto, aliás, não era dos mais simpáticos, o criminoso
já nasce com certas características cranianas e faciais, que revelam
o seu pendor ao mal. Talvez a madre Teresa de Calcutá, com aqueles
traços albaneses, o corpo curvado, o rosto escondido entre o véu, os
olhos baixos, como se fixos no chão, não lograsse ultrapassar, hoje,
os preconceitos de Lombroso e o pânico americano.
Há quem diga que o PT já pode botar as barbas de molho, pois o fato
de Osama Bin Laden exibi-las pródigas facilita a imediata associação
entre o líder talibã e os barbudinhos que imitam Lula. O governador
Olívio Dutra, por trazer a barba escanhoada, livra-se da suspeita.
Mas seus fartos bigodes o levarão, sem dúvida, a ser confundido com o
turco dono do armarinho da esquina. Patrus Ananias, com este nome e a
barba rala, vai custar a provar que não é um teólogo islâmico, até
porque profere discursos mais próximos às coisas divinas que humanas.
Nesta civilização imagética, se a moda pega seremos todos vítimas de
um novo tipo de racismo: o facial. Mas qual o parâmetro para ser
considerada uma pessoa de bem, insuspeita? Bush? Tem cara de maître
de restaurante italiano. O general Collin Powell? Cubra-o com uma
casaca e uma cartola, e será confundido com o porteiro de um hotel de
cinco estrelas. Ou treinador de boxe no Harlem. O prefeito Giuliani,
de Nova York? Podia ser o dono da sinuca da esquina.
O que é ter cara de boa gente? Talvez seja para deixar a pergunta sem
resposta que os Evangelhos jamais descrevem o aspecto físico de
Jesus. Sugerem, assim, que ninguém deve ser julgado por sua
aparência, e sim por seus atos. E o que Bush se prepara para fazer no
Afeganistão, exterminando milhares de crianças e famélicos campônios,
está longe de ser considerado um gesto exemplar.
Pior será, se do outro lado da vida, os ianques descobrirem que Deus
é mulher, e negra. E tem cara de saudita.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105347
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